No podcast desta semana, falamos sobre o livro João Ubaldo Ribeiro, a ficção e a história, uma obra do Centro de Estudos Brasileiros, recém-publicada pela Ediciones Universidad de Salamanca, com edição de Ascensión Rivas Hernández, catedrática de Teoria da Literatura e Literatura Comparada na Universidade de Salamanca. Desde 2008, Ascensión Rivas colabora com o Centro de Estudos Brasileiros, onde coordenou vários projetos sobre literatura brasileira. Como resultado dessa colaboração, publicamos diversas obras dedicadas a escritores e escritoras brasileiras, entre elas Nélida Piñon na República dos sonhos, de 2021, e Ana Maria Machado. Palavra de mulher, de 2023, também publicadas pela Ediciones Universidad de Salamanca e disponíveis em acesso aberto.
Os livros dedicados a Nélida Piñon e Ana Maria Machado, assim como o livro dedicado a João Ubaldo Ribeiro, reúnem as contribuições selecionadas dos participantes das diversas edições do Congresso Internacional de Literatura Brasileira, que o CEB organiza desde 2018.
Na verdade, o congresso é a evolução de jornadas literárias que o CEB organizava em parceria com a Academia Brasileira de Letras desde 2009. Em 2018, ano em que a USAL celebrou o seu Oitavo Centenário, essas jornadas deram origem à primeira edição do Congresso Internacional de Literatura Brasileira, dedicada, naquela ocasião, à escritora e acadêmica Nélida Piñon. O congresso dedicado a Ana Maria Machado foi marcado pela pandemia de COVID-19 e, por isso, aconteceu virtualmente. O mesmo ocorreu com a edição do Colibra dedicada a João Ubaldo Ribeiro, realizada em dezembro de 2022, também em ambiente virtual.
O livro
Com dez capítulos e uma apresentação assinada pela editora da obra, a professora Ascensión Rivas, João Ubaldo Ribeiro, la ficción y la historia reúne artigos que analisam aspectos da biografia de João Ubaldo Ribeiro e de suas principais obras, entre elas Viva o povo brasileiro, que recebe uma atenção especial nos textos.
A apresentação começa assim:
João Ubaldo Ribeiro (Bahía, 1941-Rio de Janeiro, 2014) fue uno de los escritores brasileños más relevantes del siglo XX. De clara vocación cosmopolita, aunque con las raíces ancladas en su país de nacimiento, tuvo amplios contactos no solo con la literatura americana, sino también con la europea. No en vano, vivió en Portugal, Alemania y Estados Unidos, y esas estancias fuera de Brasil le llevaron a conocer otras culturas y le ayudaron a ampliar el horizonte de su mirada. Además, fue un lector impenitente, razón por la que sus textos están plagados de referencias intertextuales que hacen más hondo su sentido y que, en ocasiones, hacen más compleja la lectura.
Ascensión Rivas Hernández (p. 9)
No primeiro artigo, também assinado pela professora Ascensión Rivas, é analisada a obra Sargento Getúlio. Vale lembrar que este romance de João Ubaldo Ribeiro foi publicado em 1971 e rendeu ao autor o prestigioso Prêmio Jabuti na categoria de autor revelação. A partir do conceito de aretê, ou seja, a virtude, Ascensión Rivas destaca a crítica que o autor faz na obra sobre a alienação do indivíduo quando este se encontra submetido a determinadas circunstâncias, especialmente sob o autoritarismo.
O acadêmico brasileiro Geraldo Carneiro, que proferiu uma conferência no congresso, é autor do segundo capítulo, um texto no qual apresenta o prólogo que escreveu para o romance Viva o povo brasileiro a pedido de João Ubaldo Ribeiro. Nele, Carneiro afirma que Viva o povo brasileiro é uma obra fundacional, daquelas que incorporam a identidade e o sentido de uma nação. Em um trecho do texto, o acadêmico afirma:
E chega: não me atrevo a inventariar as graças narrativas de Viva o Povo Brasileiro, porque, além de usurpação das prerrogativas do leitor, eu seria obrigado a parafrasear quase todo o livro.
Geraldo Carneiro (p. 32)
Antonio Maura, conferencista do congresso e sócio acadêmico correspondente, assina o artigo “João Ubaldo Ribeiro: a criação mito-poética em Viva o povo brasileiro”. Maura, profundo conhecedor da literatura brasileira, analisa a construção da identidade brasileira através dos personagens da obra. Para ele, Ubaldo evocaria um “espírito do homem” na configuração social do povo brasileiro. Mas não só isso: em seu artigo, Maura também relata como conheceu João Ubaldo Ribeiro e seu contato com o escritor. Segundo Maura, tudo começou assim:
Jacobo quedó sorprendido por semejante muestra de humildad en un novelista de reconocimiento internacional. ¿Quién era entonces el mejor intelectual para presentar un número especial de aquella revista? Jorge, siempre socarrón, sin dejar de sonreír, continuó su explicación: «El único capaz de representar a nuestro país en una publicación del nivel que ustedes quieren hacer, sólo podría ser João Ubaldo Ribeiro, que se encuentra ahora en Itaparica». Jacobo y yo nos quedamos altamente sorprendidos por aquel gesto de humildad tan poco común entre los miembros de su profesión. Y decidimos hablar con el autor que nos indicaba. Él mismo se ocupó de ponernos en contacto con João Ubaldo Ribeiro, el mejor escritor bahiano y brasileño en opinión de Jorge Amado.
Antonio Maura (p. 38)
Ivana Teixeira Figueiredo Gund é a autora de “João Ubaldo, o escritor canibal”, um capítulo também dedicado a Viva o povo brasileiro. Nesta análise, o texto explora a obra a partir do conceito e da metáfora do “escritor canibal”. Já ao final do texto, a autora conclui:
A literatura de João Ubaldo Ribeiro apresenta essa característica. Nela há uma postura consciente e reflexiva que ultrapassa a presença de uma personagem canibal ou a abordagem temática. Ribeiro produz uma escrita, na qual se constata, pelo viés da transgressão, o diferencial de sua atitude canibal frente aos textos devorados por ele. Em seu romance, o escritor se coloca como uma voz que reflete sobre questões cristalizadas pelos conceitos de Verdade, Lei, História. Há a retomada da argumentação da motivação indígena para a vingança, um direito à reparação, assim como uma valorização – direta ou indireta – da matriz indígena, de seus costumes e histórias, no sentido de esta literatura oferecer um outro lugar de expressão ou ponto de vista.
Ivana Teixeira Figueiredo Gund (p. 61)
Lilian Isabel Gomes dos Santos Miranda é a autora do último capítulo dedicado a Viva o povo brasileiro, desta vez sob uma perspectiva comparada, com o artigo “Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, e Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves: a ficção e a história oficial de uma nação”. A autora utiliza o conceito de “afropolitanismo” como ferramenta para analisar como os acontecimentos históricos são abordados em obras de ficção. Para a autora, o ponto central da comparação entre as obras está em:
Ao ponderarmos sobre os romances de Gonçalves e Ribeiro, percebemos que representam extensos trabalhos de pesquisa e manipulação de arquivos. Embora tenham sido publicados em séculos distintos – com cerca de 22 anos de diferença – sob perspectiva contemporânea, cada uma das obras assume o compromisso de desmontar e propor outras enunciações acerca do que conhecemos como história oficial do Brasil. Mas nos interessa observar também se o modo de fatura das obras e a recepção que obtiveram mantêm relações com o contexto em que foram produzidas e publicadas. No final do século XX, o romance de Ubaldo parece ser uma espécie de saga que quer encerrar um tema problemático para os estudos literários: a relação entre a literatura e a identidade nacional. Já nos primeiros anos do século XXI, a narrativa de Gonçalves parece mais atenta a uma transformação social que afeta a literatura de “fora”, e que sugere um país que quer (re)construir para si uma outra história.
Lilian Isabel Gomes dos Santos Miranda (p. 74)
O romance O feitiço da Ilha do Pavão é o tema do artigo de Marcia Regina Schwertner, intitulado “O feitiço da Ilha do Pavão, de João Ubaldo Ribeiro: mais do que ilha, um arquipélago de identidades em conflito”. A construção da identidade brasileira volta a estar presente neste estudo, que parte de um romance ambientado no período colonial brasileiro. A autora encerra seu artigo com a seguinte reflexão:
O romance se configura, assim, ferramenta de crítica, participa ativamente do debate acerca da formação nacional brasileira. Há um afastamento intencional do hibridismo étnico harmonioso, o cenário de miscigenação explorado pelo autor acentua o desequilíbrio e os confrontos que marcaram – e claramente ainda marcam – o país. O humor se alia a um vocabulário no qual o dialeto, as línguas originais de outros grupos linguísticos e a língua erudita portuguesa, ao ponto quase do barroco, mesclam-se de modo contínuo, provocando um estranhamento necessário e produtivo, capaz de retirar o leitor de sua zona de conforto, gerando consciência histórica e identitária. A ilha do Pavão emerge como espaço de ambiguidades, é conflito, mas também busca do diálogo capaz de viabilizar o contato com o outro e a permanência. As etnias que surgem se individualizam como ilhas rodeadas pelo mar; contudo, pertencentes a um arquipélago, tornam-se um todo maior, expandem a capacidade de movimento, são ponte e interação. Há variadas geografias e narrações que se multiplicam. A água que cerca é cultura que flui.
Marcia Regina Schwertner (p. 87)
Em seguida, são apresentados dois artigos que estudam o romance A casa dos Budas ditosos. O primeiro deles é assinado por María Isabel López Martínez, catedrática de Teoria da Literatura e Literatura Comparada da Universidade de Extremadura, e se intitula “Erotismo e ironia em A casa dos Budas ditosos, de João Ubaldo Ribeiro”. Para a autora, esta é uma obra única dentro do conjunto da produção de João Ubaldo Ribeiro, pois o autor teria recorrido à ironia e ao erotismo para provocar nos leitores uma reflexão crítica sobre as convenções sociais. Nas últimas linhas do artigo, a autora afirma:
Instrumento lúdico ofrecido al lector para que disfrute, reto para el escritor que precisa despojarse de prejuicios al tratar un tema sexual escabroso, soterrado ataque a las convenciones sociales, ejercicio subversivo que da una vuelta de tuerca al bildungsroman porque lo lleva a terrenos eróticos... Todo ello es A Casa dos Budas Dichosos, propiciado por la capacidad plurisignificativa de la ironía.
María Isabel López Martínez (p. 107)
O segundo artigo sobre A casa dos Budas ditosos é de autoria de Adriana Machado Meneguielli e se intitula “Dissimulação autoral e estética do extravasamento em A Casa dos Budas Ditosos, de João Ubaldo Ribeiro”. Sob a perspectiva do erotismo como alegoria para a literatura, a autora inicia seu artigo situando-nos sobre o enredo do romance:
Texto e sexualidade se interligam na construção do relato que constitui a obra ‘A Casa dos Budas Ditosos’, do escritor João Ubaldo Ribeiro. À guisa de um trovador contemporâneo que, na vertente das Cantigas de Amigo, opta pela prosa torrencial em vez da redondilha, o escritor baiano dá voz a uma narradora sexagenária que, diante da morte, decide relatar grande parte das experiências vividas em prol da assunção do desejo, e das formas – múltiplas e variadas – de vivê-lo.
Adriana Machado Meneguielli (p. 110)
Como conclusão, Adriana Machado afirma que:
Se o corpo feminino, literariamente construído, extravasa o desejo, apostando numa condução estética que, por sua vez, se pauta numa figuração dos atos e das posições sexuais aproximada à do olhar lançado à arte estatuária – e não por acaso o mote do relato se dá a partir das esculturas dos dois budas –, o texto, enquanto corpo escrito e desnudado aos olhos do leitor, compactua com essa aposta, e ao mesmo tempo acirra a dissimulação que nela se embute.
Adriana Machado Meneguielli (p. 114)
Por fim, o livro se encerra com o artigo de Ana Paula Seerig, “Um brasileiro em Berlim: João Ubaldo Ribeiro e a Unificação Alemã”. O primeiro ponto a destacar é que o romance reúne crônicas que o escritor publicou na imprensa alemã ao longo de sua estadia em Berlim. Assim, a autora retoma a análise de eventos históricos sob a ótica da ficção e da literatura. Trata-se, portanto, do olhar de um estrangeiro, o de João Ubaldo Ribeiro, sobre o contexto em que viveu na capital alemã durante a unificação do país. Sua interpretação do romance nos revela o seguinte:
Particularidades da crônica brasileira, incomum para os alemães, somadas à particularidade da posição de Ribeiro, um estrangeiro em meio a uma população que se redescobria, tornam os textos de Um Brasileiro em Berlim únicos no que se refere à forma de se observar e registrar o processo da unificação alemã. Não falamos aqui do processo político e burocrático que extinguiu a RDA, mas sim do processo social entre dois grupos de alemães que, por muito tempo, estiveram separados e precisaram adaptar-se a conviver uns com os outros.
Ana Paula Seerig (p. 124)
Sem dúvida, a história, a crítica social e a identidade (ou as identidades) são as principais chaves de leitura que os autores oferecem aos leitores em suas interpretações, primeiramente, de Viva o povo brasileiro, uma obra fundamental do escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro. Mas há muito mais no livro.
O livro completo está disponível para download gratuito neste link.
Para saber mais sobre a vida e a obra de João Ubaldo Ribeiro, ouça o podcast do BioBrasil.
Todos os textos do I Colibra estão disponíveis neste link. O livro do II Colibra também está disponível neste link.
Brasil es mucho más que samba é um programa do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Salamanca, emitido todas às terças-feiras, às 17h30, em Rádio USAL. Para sugerir uma pauta ou contatar com a equipe do programa, escreva ao masquesamba@usal.es