Neste episódio de BMQS, oferecemos uma entrevista com Fábio Fernandes, tradutor, escritor e professor do curso de Jogos Digitais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, Brasil), …não necessariamente nessa ordem.
Fábio é autor do romance Os dias da peste (Desconcertos, 2024), a primeira parte de uma trilogia que está gestando lentamente e, além disso, é responsável por traduzir para o português alguns dos grandes nomes da ficção científica internacional, como William Gibson, Isaac Asimov, Philip K. Dick e Anthony Burgess. Uma vida dedicada às letras e na qual, acima de tudo, destaca-se seu amor pela literatura.
Chapter 1: Um engenheiro que se transforma em dramaturgo

No início da entrevista, Fábio Fernandes conta que na juventude queria ser engenheiro e se dedicar à robótica, disciplina que nos anos 1980 começava a se desenvolver no Brasil. No entanto, ele não chegou a trabalhar nessa área, porque ao longo do caminho descobriu que sua verdadeira vocação era a literatura. No ensino médio, ele escreveu uma peça de teatro e a apresentou em um concurso organizado pela Universidade Federal de Alagoas. O certame, embora de âmbito universitário, estava aberto à participação de interessados de qualquer parte do país. E Fábio ganhou o primeiro prêmio!
Anos depois, em 1998, Fábio Fernandes transformou aquela pequena peça de três atos em uma obra maior, que foi encenada pela primeira vez no Teatro Villalobos, no Rio de Janeiro, sob a direção do ator Luiz Armando Queiroz.
Assim, nosso protagonista estreou na literatura com uma peça teatral, cujo argumento, além disso, nada tinha a ver com a ficção científica.
Quando terminou o ensino médio, Fábio Fernandes disse aos seus pais que não queria se dedicar à eletrônica, mas sim ao teatro, algo que, como era de esperar, não despertou muito entusiasmo em seus progenitores. Após alguns debates, nosso entrevistado decidiu direcionar seus passos para o jornalismo, com a ideia de poder ganhar a vida com a palavra escrita. Como jornalista, trabalhou na seção cultural de vários jornais, primeiro no Rio de Janeiro e, desde 2001, na megalópole de São Paulo.
Sempre desejou ser escritor, desde criança, quando preenchia cadernos com histórias cheias de viagens espaciais e alienígenas. Durante o tempo em que se dedicou ao teatro, o espaço e os raios lasers foram relegados pelo realismo, mas na universidade ele voltou a encontrar seu primeiro amor: a ficção científica. Lá, ele se inscreveu no recém-criado Clube de Leitores de Ficção Científica, onde começou a devorar livros do gênero com avidez… e não houve mais volta.
Chapter 2: Quando as máquinas tomam o poder

A segunda parte da entrevista é dedicada ao trabalho de Fábio Fernandes como autor. Sua primeira obra foi a antologia de contos Interface com o Vampiro e outras histórias (Writers, 2000), um total de 11 contos breves, alguns dos quais já haviam sido publicados anteriormente em antigos fanzines. A edição realizada pela Writers os compilou todos em formato digital e com impressão sob demanda, algo a que agora estamos acostumados, mas que era bastante inovador no início dos anos 2000.
Fábio conta que os contos de Interface não têm um fio condutor, embora todas as histórias guardem alguma relação com o amor e a memória: pode não ser exatamente uma história de amor, ou de amor entre duas pessoas; pode ser que o protagonista seja a falta de amor ou alguém que busca redenção em suas memórias… Os dois últimos contos, ‘Um diário dos dias da peste’ e o que dá título à obra, ‘Interface com o vampiro’, foram reescritos e ampliados posteriormente, acabando por dar origem ao seu primeiro romance, Os dias da peste, publicado originalmente pela Tarja em 2009.
A inspiração veio para Fábio depois de assistir a Matrix (1999), o icônico filme das irmãs Wachowski. Nosso entrevistado ficou fascinado com ela, embora estivesse insatisfeito com a antiga ideia de que as máquinas são nossas inimigas, tão comum na ficção científica anglo-americana. Nesse sentido, Fábio faz uma reflexão interessante e diz que
A ficção científica é colonialista a partir do momento em que ela define que qualquer coisa que não somos nós será fatalmente nossa inimiga.
Fábio Fernandes

Fábio não concordava com isso: convivemos diariamente com as máquinas, então se elas adquirirem consciência, algumas podem ficar chateadas conosco por terem que nos servir, mas não seria lógico pensar que outras estariam satisfeitas com isso, que se apresentariam como nossas companheiras, colaboradoras e até amigas?
Esse é o ponto de partida de Os dias da peste: quando ocorre a “singularidade”, cada máquina que adquire consciência reage de uma maneira diferente. Todas rapidamente se unem no que chamam de “estado fluido” e solicitam um assento na ONU para poder falar de igual para igual com a humanidade… um espaço que lhes é concedido. A história é protagonizada por Artur Matos, um técnico de informática com uma veia literária frustrada e autor de um diário, o “Diário dos dias da peste”, que acaba se tornando o conteúdo do livro.
Em 2024, Os dias da peste viu a luz novamente em uma nova edição (a terceira!), revisada e atualizada, com um prefácio do lendário escritor e músico Fausto Fawcett e um epílogo de Gabriela B. Souto, pesquisadora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB, Brasil).
Chapter 3: Reescrevendo. O trabalho do tradutor
Além de escritor, Fábio Fernandes é tradutor para o português de alguns dos maiores clássicos da ficção científica de todos os tempos. Assim, na entrevista, perguntamos quando ele começou a se interessar pelo trabalho de tradução e pelas dificuldades intrínsecas de transferir para outro idioma uma história desse gênero, no qual frequentemente novas palavras, gírias e até idiomas completos são criados.
Fábio conta que, pouco depois de terminar o ensino médio, viu no jornal o anúncio de um curso de tradutor e intérprete ministrado por Daniel Brilhante de Brito. Fábio foi à primeira aula e ficou fascinado por este incrível poliglota, que falava 20 idiomas, incluindo grego, latim e sânscrito, e que sempre explicava aos seus alunos a origem etimológica das palavras. Isso o agradou tanto que ele decidiu ser tradutor.
Ele começou a traduzir em 1986, um livro da editora Record sobre a revolução cubana, e nunca mais parou. Por suas mãos passaram algumas das obras que qualquer amante de ficção científica que se preze tem em sua estante, como A Laranja Mecânica (Burgess), 2001 (Clarke), Fundação (Asimov) e, mais recentemente, a tetralogia de O Livro do Sol Novo de Gene Wolf, até então inédita em português.
Quanto às obras que mais trabalho lhe deram, Fábio não tem dúvidas: A Laranja Mecânica, seguida de perto por O Livro do Sol Novo e A Psalm for the Wild-Built de Becky Chambers. Todos eles representaram um desafio, por diferentes motivos: pela grande quantidade de gírias inventadas no caso de A Laranja Mecânica, pelo pronome binário do protagonista da obra de Becky Chambers e pelos arcaísmos de O Livro do Sol Novo, onde não há uma única palavra inventada, mas todos os termos estavam em uso… antes do século XVIII!
Neste sentido, Fábio Fernandes diz que
É fascinante, aí já me sinto reescrevendo o trabalho do autor, né? Há uma corrente que diz que o tradutor também é escritor, mesmo que não houvesse publicado nenhum livro meu poderia me orgulhar de ser um escritor em parceria com o autor da obra original.
Fábio Fernandes
Epilogue: Olha no futuro
Terminamos a entrevista perguntando a Fábio Fernandes sobre seus projetos futuros. Ele conta que, daqui a algumas semanas, viajará para a China, junto com outros instrutores internacionais, para ministrar um curso no primeiro grande Workshop de ficção científica desse país. Além disso, no final do ano, será lançada no Brasil a tradução de seu romance Under Pressure (Newcon Press, 2023), que ele escreveu originalmente em inglês e publicou na Inglaterra. A obra, que dobrou de volume após ser traduzida para o português, será lançada sob o selo da editora Avec.
Para terminar, Fábio nos surpreende ao dizer que em seus próximos trabalhos se afasta da ficção científica e mergulha no campo do romance histórico e policial. Isso exige uma nova entrevista!
E para terminar, agradecemos a Fábio Fernades pela oportunidade da entrevista.
Para saber mais
Terra Incognita, canal de YouTube de Fábio Fernandes.
Cesco, A., Barboza, B. R. G. & Abes, G. J. (2017). Entrevista com Fábio Fernandes. Cadernos de Tradução, 37(3). Recuperado de https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2017v37n3p393
Souto, G. B. de. (2021). Infodemia, heranças intertextualizadas e simbioses: as “Inteligências Construídas” através da bibliografia de Fábio Fernandes no romance Os dias da peste. Tesis de doctorado, Universidade Estadual da Paraíba (UEPB, Brasil). Recuperado de http://tede.bc.uepb.edu.br/jspui/bitstream/tede/3762/2/Gabriela%20Barbosa%20de%20Souto.%20Versão%20final%20da%20tese%20-%20PPGLI.pdf
Paisagempersonas. (20/01/2017). Resenha de Os dias da peste. Ficção Científica Brasileira. Recuperado de https://ficcaocientificabrasileira.wordpress.com/2017/01/20/os-dias-da-peste/
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