Quando se diz que o samba é uma parte fundamental da identidade brasileira, isso não significa que os brasileiros e brasileiras gostem exclusivamente de samba, de sambar ou de carnaval. Também. Porque como diz o poeta “quem não gosta de samba bom sujeito não é”. Mas, o que se tenta expressar com essa afirmação é que entre outras possibilidades de expressões artísticas, o samba saiu, digamos, vencedor.
A cidade do Rio de Janeiro no início do século XX foi o cenário que propiciou o encontro de expressões culturais de origem europeia, africanas e afro-brasileiras. Cada uma delas estava ligada a um ou a mais grupos sociais, que por sua vez, ocupavam lugares diferentes na hierarquia social e no espaço geográfico da cidade. Os negros, mulatos e crioulos da Pequena África, nos guetos dos morros ou na periferia; a elite branca de origem europeia, o centro. O lugar de encontro comum a todos, isso foi, pouco a pouco, mudando a medida em que o próprio samba foi se afirmando como gênero musical, primeiro, urbano, e depois, carnavalesco. Às vezes, algumas histórias do samba nos levam a pensar que o samba “desceu o morro” e se instalou nos lugares do Rio senhorial, recém-Republicano. Na verdade, não foi bem assim: houve contato, houve encontro, misturas, mas também houve muita disputa e conflito. Entre outros motivos, porque o samba teve que conquistar um lugar entre outros gêneros musicais e afirmar-se como aquele que reunia os requisitos para ser o mais querido entre todos: permitir cantar, dançar, e logo o que conhecemos hoje como desfilar. E para isso teve que adaptar-se, abrir-se a ritmos e letras, a uma nascente indústria de difusão cultural – o rádio e selos fonográficos-, e permitir a participação de outros grupos sociais. Ora, daí perguntamos: estaria o samba destinado a vencer? Não sabemos a resposta a esta pergunta, mas o fato é que todas essas adaptações, mudanças e permanências conformaram uma estratégia de resistência do samba como expressão cultural de um amplo seguimento da sociedade carioca.
E como não podia deixar de ser, este processo de construção do samba resultou numa variedade riquíssima de estilos entre os quais reconhecemos três variantes como matrizes fundamentais do samba carioca: o samba de terreiro, partido-alto, e samba enredo. Nesta entrada, falaremos sobre samba de terreiro e nas próximas entregas desta coluna, falaremos de partido-alto e samba enredo.
Há um estudo muito interessante dedicado às matrizes do samba, que foi realizado pelo Centro Cultural Cartola, com o apoio do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e a Fundação Palmares. Esse documento é o resultado de uma pesquisa realizada por uma grande equipe que tratou de buscar as raízes do samba carioca para defendê-lo como patrimônio cultural do Brasil, título recebido em 2007.
O samba de terreiro se definia pelo seu contexto, pelas suas circunstâncias, porque era um samba que acontecia no terreiro das casas das tias, como a famosa Tia Ciata, e depois das escolas de samba, que surgiriam na década de 1930. Porém, o terreiro não era somente um espaço físico (também podia ser o quintal ou o terreiro de candomblé), mas um espaço de intercâmbio cultural, porque o samba de terreiro implicava uma prática coletiva, comunitária, de se fazer samba. Como o samba de terreiro era praticado para o consumo e desfrute no âmbito da comunidade, era somente o grupo de sambistas das escolas que tinha legitimidade para designar um samba (aqui entendido como música) como sendo de “terreiro”. Como música, o samba de terreiro tinha uma primeira parte fixa, um refrão forte cantado em coro, e uma segunda parte mais livre para o improviso do sambista. Com as gravações em disco, a segunda parte do samba de terreiro também foi se fixando, dando cada vez menos espaço para a improvisação dos sambistas.
Sobre as temáticas, o samba de terreiro exaltava a própria escola, seus símbolos e integrantes. Normalmente, os seus compositores eram figuras emblemáticas da escola, e o acontecimento do samba de terreiro era o momento de união de todos entorno dessa narrativa que, ao mesmo tempo, identificava e interpretava a comunidade. Com o passar do tempo e a profissionalização das escolas de samba, os terreiros se transformaram em quadras, e hoje, o samba de terreiro é muito mais um repositório cultural de identificação desse passado histórico das escolas.
O samba de terreiro se esgotou na década de 1960, com a afirmação definitiva do samba enredo como estilo principal. Se o rádio e a indústria fonográfica foram os pilares fundamentais para a disseminação do samba, foram também, por outro lado, o princípio do fim porque eliminavam qualquer possibilidade de rearranjo espontâneo por parte dos sambistas. Mesmo assim, ainda hoje é possível encontrar alguns lugares que tentam resgatar este estilo de samba, como o Semente, no bairro da Lapa, no centro do Rio de Janeiro; e o Candongueiro, em Niterói.
Referências:
Centro Cultural Cartola, Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Fundação Palmares. Dossiê das matrizes do samba no Rio de Janeiro. Recuperado de [http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/13_1%20Samba%20do%20Rio%20de%20Janeiro%20%C3%A9%20Patrim%C3%B4nio%20Cultural%20do%20Brasil.pdf]. Consultado [01/11/2019].
Centro Regional para la Salvaguardia del Patrimonio Cultural Inmaterial de América Latina (CRESPIAL) [crespial]. Matrizes do Samba no Rio de Janeiro: partido alto, samba de terreiro e samba-enredo (Brasil). Consultado [01/11/2019].
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TVBrasil [tvbrasil]. O samba da minha terra – Diogo Nogueira, Danilo Caymmi e Nelson Rufino. Consultado [29/09/2020].