O samba da minha terra: Dona Ivone Lara

Dona Ivone Lara, a primeira mulher que formou parte da ala de compositores de uma escola de samba no Brasil.

Esta entrega da coluna “O samba da minha terra” está dedicada a Dona Ivone Lara, a grande dama do samba brasileiro.

Yvonne da Silva Lara nasceu em 13 de abril de 1921, no bairro de Botafogo (Rio de Janeiro, Brasil), e faleceu em 16 de abril de 2018, a causa de uma insuficiência cardiorrespiratória.

Dona Ivone Lara foi uma grande compositora de samba, de samba-enredo, de melodia, a primeira mulher a integrar a ala dos compositores de uma escola de samba, e a compor um samba-enredo, “Os Cinco Bailes da História”, tema do desfile da escola de samba Império Serrano, de 1965, assinado por ela com Silas de Oliveira e Bacalhau, alcançando assim o reconhecimento como compositora de samba em um espaço cultural bastante masculino. Mais tarde, se tonaria “Dona Ivone Lara”, batizada pelo produtor musical Oswaldo Sargentelli. Muitas obras trataram da vida e da obra de Dona Ivone Lara, porém uma das referências mais importantes é a dissertação de mestrado de Mila Burns, Nasci para sonhar e cantar. Gênero, projeto e mediação na trajetória de Dona Ivone Lara, defendida no programa de pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. No texto, a autora vai construindo a biografia, a trajetória, de Dona Ivone Lara a partir de suas relações sociais (a família e os amigos), e das decisões e escolhas que a protagonista fez ao longo de sua vida, além do contexto histórico, quando o samba se afirmava como a expressão cultural brasileira por excelência.

Mila Burns destaca que Dona Ivone Lara

Faz parte de um universo quase sagrado no Brasil: o do carnaval, do samba, do ritmo, do suingue. Mas não se encaixa exatamente em nenhum dos ‘tipos’ mais conhecidos desse universo. Não é ‘tia’, não é passista, tampouco é musa inspiradora. Ela simplesmente compõe e canta, como fazem tantos homens

Burns, 2006, p. 20

Done Ivone Lara era a mais velha de uma família de quatro irmãos: ela e a irmã Elza, do primeiro matrimônio da mãe (que ficou viúva ainda muito jovem), e depois, do segundo casamento, outros dois irmãos. A mãe de Dona Ivone Lara faleceu muito jovem, deixando à tia o encargo dos cuidados dos filhos. Nessa época, Dona Ivone Lara, já vivia no internato Orsina da Fonseca (Rio de Janeiro), onde recebeu uma excelente formação, inclusive musical. Ali ministravam aulas de música a professora Zaíra de Oliveira, a esposa do sambista, músico e compositor, Donga, e Lucília Villa-Lobos, esposa do grande maestro Heitor Villa-Lobos.

Ao longo desses primeiros anos de formação, Dona Ivone Lara compartilhou, circulou com muita tranquilidade, entre dois mundos que tinham registros culturais bem diferentes: por um lado, o samba e o choro da periferia do Rio, primeiro por influência dos pais, que participavam no cordão Ameno Rosendá, e depois na casa dos tios; e por outro, a música de registro erudito nos anos de internato.

Quando terminou o internato tinha 17 anos e se mudou para a casa dos tios. A família tinha poucos recursos, e ela precisava ajudar nos gastos da casa e conquistar a tão almejada independência econômica. Foi assim que entrou no curso de enfermagem, formando-se em 1943, e logo depois começou a trabalhar na emergência do Colônia Juliano Moreira. Contando já com alguma experiência profissional, em 1945, começou a fazer um curso para assistente social.

O ano de 1947 foi de muita importância na vida de Dona Ivone Lara. Ela se formou como assistente social, e foi trabalhar no Instituto de Psiquiatria do Engenho de Dentro, onde tinha como supervisora a Dr.ª Nísia da Silveira, a médica psiquiatra que revolucionou a psiquiatria no Brasil. Também em 1947, ainda com 25 anos, se casou com Oscar, filho do presidente da Prazeres da Serrinha, escola de samba que desapareceria no ano seguinte. E mais: em 23 de março de 1947, foi fundada a Império Serrano por dissidentes do Prazeres da Serrinha, escola da qual faria parte ao longo de toda a vida. Finalmente, considera-se que este ano marca o início de sua carreira como compositora, mesmo que a consagração viria com o samba-enredo “Os Cinco Bailes da História”, de 1965.

O início na carreira como compositora de samba não foi fácil: além de passar por situações difíceis por ser mulher e negra, durante bastante tempo teve que ocultar a autoria de suas composições. Era o primo mestre Fuleiro quem apresentava as composições como suas, que sempre agradavam muito, até que um dia ele revelou que a verdadeira autora era a prima. De qualquer forma, o fato é que, de acordo com a pesquisa realizada por Mila Burns, Dona Ivone Lara não teria entrado para a ala dos compositores até 1970: 

O ingresso na agremiação deu-se por conta da divulgação de “Pingo de Felicidade”, samba gravado por Christiane – cantora relativamente conhecida na ocasião. Com o sucesso da canção, os diretores da escola procuraram saber quem era seu jovem compositor.

Burns, 2006, p. 77.

No caso, compositora.

Yvone Lara passa a ser Dona Ivone Lara em 1970, com o lançamento do disco Sambão 70, um trabalho coletivo produzido por Sargentelli. Se a década de 1970 inaugura sua entrada profissional no mundo da música, também foi um período conturbado: em 1972, faleceu Silas de Oliveira, parceiro de muitas composições; três anos depois, em 1975, falece o marido, a causa de um infarto, muito provavelmente relacionado com o acidente de carro que o filho do casal sofreu na Perimetral, no centro do Rio de Janeiro. Entre o trabalho como assistente social, os cuidados com o filho ainda hospitalizado, a perda do marido, Dona Ivone Lara encontrou consolo e refúgio na música, na companhia de quem a acompanharia por muito tempo, Délcio Carvalho.

Em 1977, Dona Ivone Lara se aposentou e a partir daí começo a dedicar-se exclusivamente à composição, além dos cuidados com a família, tarefa que nunca abandonou. Em 1978, gravou o disco Samba, minha verdade, minha raiz. Foi nessa época que “Sonho meu”, composição original de Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho, foi gravada no disco Álibi, de Maria Bethânia com Gal Costa, versão que foi um sucesso absoluto.

Daí em diante, foi emplacando uma média de um disco a cada dois anos. Os anos 1990 foram marcados pelo reconhecimento nacional, com diversos prêmios. E entrando nos anos 2000, Dona Ivone Lara assumiu uma agenda pesada de participação em festivais internacionais e shows em diversas capitais europeias. O seu último disco, SambaBook – Dona Ivone Lara, congregou os novos e antigos parceiros, novos nomes da cena do samba carioca, e foi gravado em cd e em dvd, em 2015.

Apesar das durezas da vida, Dona Ivone Lara foi uma mulher que viveu sob seus próprios critérios, e que mesmo tendo relegando a música aos momentos de lazer, de folga do trabalho, deixou uma marca profunda na história do samba brasileiro, com composições únicas e inesquecíveis.

Referências:

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Burns. M. (2006). Nasci para sonhar e cantar Gênero, projeto e mediação na trajetória de Dona Ivone Lara. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Recuperado de [http://www.academiadosamba.com.br/monografias/MilaBurns.pdf]. Consultado [15/01/2021].

Canal Brasil (s.d). Dona Ivone Lara, Alcione e Lázaro Ramos. Recuperado de [https://www.youtube.com/watch?v=9lhSGFaCUnw&t=1300s]. Consultado [15/01/2021].

Dona Ivone Lara (s.d.). Wikipedia. Recuperado de [https://es.wikipedia.org/wiki/Dona_Ivone_Lara]. Consultado [15/01/2021].

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Tribuna. A força da mulher na música brasileira. Recuperado de [https://www.tribunapr.com.br/mais-pop/a-forca-da-mulher-na-musica-brasileira/]. Consultado [15/01/2021].

TV Brasil [tvbrasil]. (s. f.). Especial “Sonho Meu”: uma homenagem a Dona Ivone Lara. YouTube. Recuperado de Especial “Sonho Meu”: uma homenagem a Dona Ivone Lara]. Consultado [15/01/2021].

Músicas do programa:

“O samba da minha terra”, interpretada por Rosinha de Valença, no disco Um violão em primeiro plano, de 1971.

“Tiê”, interpretada por Dona Ivone Lara, no disco Quem samba fica? Fica, de 1972.

“Alguém me avisou”, interpretada por Dona Ivone Lara, no disco Sorriso negro, de 1981.

“Sonho meu”, vários intérpretes, no disco Sambabook, de 2015.

 

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