Brasil con ñ: escolas radiofônicas brasileiras

Kelly Ludkiewicz, professora da UFBA, fala no BMQS sobre o Movimento de Educação de Base e as escolas radiofônicas brasileiras.

Nesta nova entrega de Brasil con ñ oferecemos uma entrevista com Kelly Ludkiewicz, pesquisadora brasileira e professora de História da Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA, Brasil), sobre o rádio como ferramenta para comunicar, entreter e auxiliar no processo de ensino e aprendizagem. A entrevistada está finalizando uma estância de pesquisa pós-doutoral com bolsa do programa CAPES-PrInt, em Madri, no Consejo Superior de Investigaciones Científicas da Espanha (CSIC), com a orientação do Prof. Leoncio López-Ocón Cabrera, do Departamento de História da Ciência.

O tema da entrevista foi objeto de análise na tese de doutorado que a pesquisadora defendeu em 2016, no programa de pós-graduação em Educação, História, Política e Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, Brasil), orientada pelo Prof. Dr. Kasumi Munakata, com o título Entre as cartas e o rádio: a alfabetização nas escolas radiofônicas do Movimento de Educação de Base em Pernambuco (1961-1966), cuja versão revisada encontramos no livro Entre as cartas e o rádio: alfabetização de adultos e cultura popular nas escolas radiofônicas do Movimento de Educação de Base, publicado pela EdUFBA, em 2022. Agora em Madri, Kelly Ludkiewicz pesquisa a educação radiofônica, mas

a partir de aspectos relacionados ao rádio como meio tecnológico de difusão de conteúdos educativos, culturais e científicos, considerando aspectos como as condições de emissão, recepção dos programas e os seus atributos, baseados na ideia de que o rádio pode oferecer uma experiência educativa mais amena e lúdica.

No início da entrevista, Kelly Ludkiewicz fala sobre a sua formação e trajetória profissional, ambas relacionadas com o ensino de Jovens e Adultos (EJA) – na prática de ensino e na pesquisa científica – e como esse tema lhe trouxe a Espanha pela primeira vez, vinculada ao grupo Lectura, Escritura y Alfabetización na Universidad de Alcala de Henares (UAH, Espanha), com a orientação do professor Antonio Castillo Gómez. No entanto, o tema da Educação pelo rádio nasceu quando, durante o doutorado, Kelly Ludkiewicz encontrou uma série de cartas de monitoras e estudantes das escolas radiofônicas à equipe do Movimento de Educação de Base, o MEB. Esse movimento se caracterizava por promover a educação popular em alfabetização de jovens e adultos, especialmente de comunidades rurais. O MEB foi oficializado em 1961 mediante o acordo entre a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Ministério da Educação e Cultura do Brasil. Na entrevista, Kelly Ludkiewicz destaca três aspectos para compreender a importância do MEB no contexto brasileiro: a defesa do acesso à educação por amplos setores da sociedade, a alfabetização como requisito para participação política e, com relação ao contexto, “a defesa do rádio como meio tecnológico para a promoção da alfabetização”. Assim, na pesquisa, Kelly Ludkiewicz analisa através das cartas das monitoras, o papel fundamental que essas mulheres desempenharam nas escolas radiofônicas de Pernambuco dos anos 1960. Essas escolas rurais tinham no rádio um importante aliado para a formação das comunidades.

O que me chamou a atenção na leitura inicial dessas cartas foi o fato de que se tratava de um movimento de educação pelo rádio, mas muitas delas relatavam problemas com os aparelhos e a transmissão das aulas. Então, me surgiu a questão de investigar a atuação das monitoras no movimento a partir das cartas, já que me pareceu que diante da ausência do rádio, em muitas escolas, seriam elas as responsáveis pela alfabetização dos adultos. A partir dessas fontes pude investigar aspectos sobre o cotidiano das escolas radiofônicas e como se constituíam esses espaços desde o ponto de vista da sua infraestrutura como também sobre a participação dos camponeses em todos esses processos.

Essas correspondências também descreviam com bastantes detalhes o cotidiano das escolas e os desafios que monitoras e estudantes enfrentavam. Além dos problemas técnicos com o equipamento, as monitoras eram responsáveis pela prática docente e da gestão das escolas. Para Kelly Ludkiewicz, as escolas radiofônicas foram um espaço de organização e formação de trabalhadores rurais e de toda a comunidade.

Geralmente, essas escolas radiofônicas funcionavam em condições precárias e a maior parte delas estavam instaladas na casa das monitoras, que eram mulheres em sua maioria e algumas delas professoras primárias. Elas tinham a função de ouvir os programas junto com os alunos, auxiliá-los no processo de alfabetização e cuidar da organização e da gestão dessas escolas, como, por exemplo, fazer as matrículas, registrar a frequência e solicitar materiais. O trabalho era voluntário e era necessário que fosse uma pessoa alfabetizada e que tivesse certa liderança na comunidade. Além disso, também cuidavam da manutenção das escolas radiofônicas no sentido de conseguir os materiais necessários para o funcionamento, como por exemplo, pilhas para o rádio, querosene para o lampião, cadernos, lápis, enfim, o MEB não fornecia esses materiais, que deveriam ficar a cargo das monitoras e dos estudantes.

Atualmente, Kelly Ludkiewicz investiga o rádio como meio tecnológico para difusão de conteúdos educativos, culturais e científicos. A pesquisa se desenvolve num âmbito mais amplo de diálogo com pesquisadores da REDiHEC, “em uma perspectiva que na História da Educação chamamos de transnacional”. Mais especificamente, o tema trata da utilização do rádio na educação dos anos de 1930, a partir de um periódico espanhol chamado Ondas,

que foi publicado semanalmente pela Unión Radio, entre os anos de 1925 a 1936. Unión Radio foi a primeira cadeia de rádio espanhola dirigida pelo engenheiro Ricardo Urgoiti, que tinha como projeto alcançar um rápido desenvolvimento da radiofonia no país tanto nos seus aspectos técnicos como nos campos cultural e artístico

Nesse sentido, a pesquisa que vem realizando considera “aspectos como as condições de emissão, recepção dos programas e os seus atributos, baseados na ideia de que o rádio pode oferecer uma experiência educativa mais amena e lúdica”. E sobre isso, Kelly Ludkiewicz compartilha uma interessante reflexão sobre o rádio e sua potência em comunicar conteúdos educativos: os contextos de produção e de recepção de conteúdos e sentidos são fundamentais. Por exemplo, na entrevista Kelly Ludkiewicz comenta que na década de 1930, o debate sobre o uso do rádio na Espanha estava relacionado com a ideia da difusão do conhecimento para a resolução de problemas, enquanto no Brasil o debate ganhou contorno identitários, para a construção de uma nacionalidade.

Nesse aspecto fazendo uma comparação entre o caso espanhol e o brasileiro, na Espanha esse debate em torno ao uso do rádio nos primeiros anos da década de 30 se deu no contexto da Segunda República, então, prevalecia a ideia do rádio como difusor de uma cultura universal, mas também regional, de integração do país, de expansão das ofertas educativas, de desenvolvimento do campo a partir da modernização da agricultura e de um saber científico aplicado a essa melhoria social muito baseada na ideia da isenção do saber científico. Enfim, a proposta de que o rádio atuasse na difusão de conhecimentos que poderiam contribuir para a resolução de problemas e promover o desenvolvimento da sociedade. No Brasil, essas mesmas ideias também circulam, mas em diálogo com o projeto de desenvolvimento que está relacionado com o Estado Novo, em que era muito forte a perspectiva da formação de uma identidade nacional, de uma nacionalidade, de um Estado forte, e nesse aspecto mais alinhado ao ideal do fascismo italiano.

Na última parte da entrevista, Kelly Ludkiewicz trata do consumo de produtos radiofônicos ao longo da história. Ela afirma que, de certa forma, o compromisso em comunicar e entreter do rádio está presente desde a sua origem, mas também através do rádio ultrapassamos barreiras geográficas, de que o rádio se presta à divulgação científica, à educação, formação, e ao entretenimento, naturalmente. E mesmo com todas as inovações tecnológicas nos dispositivos – e no que isso implica em novas formas de consumir rádio – o rádio continua a ter uma importância singular em nossas vidas.

Ainda bem!

Confere a entrevista completa abaixo.

Para saber mais:

Alves, K. L. (2012). Desempenho escolar e práticas culturais familiares: a relação de alunos do ensino fundamental II com a disciplina de História. Revista Educação Em Questão43(29). https://doi.org/10.21680/1981-1802.2012v43n29ID4066

Alves, K. L. (2016). Entre as cartas e o rádio: a alfabetização nas escolas radiofônicas do MEB em Pernambuco. Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

Alves, K. L. (2022). Entre as cartas e o rádio: Alfabetização de adultos e cultura popular nas escolas radiofônicas do Movimento de Educação de Base. Salvador: EdUFBA. 

REDiHEC. Rede Ibero-Americana de História da Educação em Ciências.

Kelly Ludkiewicz. Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (FACED/UFBA) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE-FACED/UFBA). Realizou estágio como Pesquisadora Visitante no Exterior, no Departamento de História do Consejo Superior de Investigaciones Científicas (CSIC-Espanha) e na Universidad Carlos III de Madrid, com financiamento do Programa de Bolsas CAPES-Print PVEJ. Historiadora graduada pela USP, Mestre e Doutora em Educação pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade (EHPS-PUC/SP). No doutorado realizou estágio de pesquisa no Grupo Lectura, escritura y alfabetización (LEA) da Universidad de Alcalá (Espanha), com financiamento do Programa de Bolsa Sanduíche PDSE-CAPES. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Memória e História da Educação (MEHED-FACED/UFBA), integrante do Grupo de Pesquisa Educação, Comunicação e Tecnologias (GEC-FACED/UFBA) e da Rede Iberoamericana de História da Educação em Ciências (REDiHEC). 

Fonte: Plataforma Lattes.

Brasil con ñ é uma coluna dedicada a divulgar pesquisas sobre o Brasil na Espanha do programa Brasil es mucho más que samba, emitido em Rádio USAL, todas às terças-feiras, às 17h30. Para sugerir uma pauta ou contatar com a equipe do programa, escreva ao masquesamba@usal.es 

Compartir

Relacionado:

Podcast de “O samba da minha terra”, dedicado a Mart’nália, um dos grandes nomes do samba contemporâneo brasileiro.
Mergulhamos na ficção brutal de Roberto Denser, que com seu romance “Colapso” deixou uma marca indelével na ficção científica distópica contemporânea.
Nesta edição, passeamos pela vida e obra de Aline Valek, escritora, ilustradora e criadora de mundos que cambaleiam à beira do colapso.
Uma viagem por diferentes estilos da música brasileira: cinco artistas, cinco olhares, uma só energia que une tradição, modernidade e muita criatividade.
Anterior
Próximo