Um voo fotográfico sobre as contradições do Rio de Janeiro
Quando se sobrevoa o Rio de Janeiro, o que mais impressiona não são apenas as paisagens de cartão-postal: as curvas da Baía de Guanabara, o Pão de Açúcar, o Cristo Redentor, o azul do mar e o verde das montanhas. Do alto, também se tornam visíveis — e persistentes — as fraturas sociais, a precariedade habitacional, a ausência de infraestrutura, a densidade desigual de uma cidade espremida entre o morro e o mar. Há anos, Genilson Araújo registra essa outra imagem do Rio, câmera na mão, a partir de um helicóptero que sobrevoa a cidade.
O fotógrafo brasileiro é o autor da exposição Favela vista de cima, que poderá ser visitada na sala de exposições do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Salamanca entre 2 de dezembro de 2025 e 30 de janeiro de 2026. A mostra foi selecionada na décima edição do programa de Residência Artística de Fotografia do CEB e oferece uma visão crítica, sensível e profundamente informada sobre as comunidades urbanas que se desenvolvem nas encostas cariocas.
Jornalismo, fotografia e altura
Nascido no Rio de Janeiro, Genilson Araújo tem mais de três décadas de atuação no jornalismo. “Sou jornalista há 36 anos”, comenta. Sua carreira começou no rádio, meio em que trabalhou por mais de 20 anos, até migrar para o telejornalismo, onde atua atualmente como repórter especializado na cobertura da mobilidade urbana, segurança pública e desastres naturais. Há quase uma década, acompanha o cotidiano do Rio de Janeiro para uma emissora de grande audiência.
O que transformou seu olhar foi uma experiência singular: o trabalho como repórter aéreo. A bordo de um helicóptero, e como parte de sua rotina jornalística, Genilson começou a registrar com uma câmera fotográfica as vistas aéreas da cidade. O que começou como um acervo pessoal foi ganhando consistência até se transformar em um valioso conjunto de imagens. “Eu embarquei com a câmera fotográfica e, além de fazer os serviços radiojornalísticos, eu passei a fotografar. E eu fotografava de tudo”, relembra. Algumas dessas imagens foram publicadas em grandes veículos nacionais e internacionais, e deram origem a projetos editoriais, como um livro que combinava um olhar artístico com o rigor informativo do fotojornalismo.
Sua formação como fotógrafo começou, na verdade, antes da universidade. Em suas palavras: “Eu era bancário e comecei a fazer um curso de fotografia, e a pegada desse curso era justamente uma pegada fotojornalística. Fiquei muito animado com o trabalho dos fotojornalistas… Aquilo me atraiu muito e eu pensei logo de cara em ser repórter fotográfico”. Mais tarde cursou jornalismo, o que fortaleceu ainda mais sua vocação como cronista visual do cotidiano urbano.
Favela vista de cima: arquitetura do caos e direitos humanos
De sua experiência aérea, uma das coisas que mais lhe chamaram a atenção foi a forma como as favelas se inserem no território urbano. O Rio de Janeiro, explica, é uma metrópole “entre a montanha e o mar”, e essa geografia determina a localização de muitas comunidades. A Rocinha, por exemplo, estende-se por uma encosta na zona sul e é considerada a maior favela do Brasil, com mais de 72 mil habitantes.
O projeto Favela vista de cima nasce da necessidade de mostrar essa realidade a partir de uma perspectiva singular, que combina o olhar treinado do repórter com a sensibilidade de quem conhece a cidade por dentro. “As favelas continuam com os mesmos problemas”, afirma Genilson. “Muita gente vivendo em situações onde não há esgotamento sanitário, onde não há fornecimento de água, onde não há acessibilidade…”. O que começou como um registro espontâneo se transformou em um trabalho sistemático, fundamentado também em dados estatísticos — especialmente do Censo de 2022 do IBGE, que aponta que mais de 16 milhões de brasileiros vivem em favelas.
O foco do projeto não é o da denúncia sensacionalista, tampouco o do exotismo visual. Trata-se, antes, de um convite ao olhar atento. “Não é uma visão preconceituosa (…), mas com muita preocupação e com muito cuidado”, diz ele. Seu objetivo é mostrar que, por trás daquela arquitetura caótica, há pessoas com direitos: “O olhar é sempre crítico em relação às autoridades, em relação à governança, perante essas necessidades das pessoas”.
Técnica, olhar e acesso
Apesar de possuir câmeras profissionais, Genilson optou por uma ferramenta que lhe proporciona maior mobilidade a bordo do helicóptero: o smartphone. Com um dispositivo de alta qualidade, foi construindo seu acervo fotográfico em plena rotina jornalística. “Muitas das fotos foram feitas com o helicóptero em movimento, em meio ao meu trabalho do dia a dia no telejornalismo”, conta.
A seleção das imagens para esta exposição não foi simples: o acervo ultrapassava 10 mil fotografias. O critério curatorial buscou construir uma narrativa visual que articulasse os contrastes entre a cidade formal e a informal, entre o planejado e o improvisado, entre o regulamentado e o precário. Em suas palavras: “Eu comecei a produzir várias fotos das comunidades sempre tentando entender a arquitetura caótica, sempre procurando observar as contradições entre a cidade organizada e a cidade desorganizada”.
Rio de Janeiro: entre o cartão-postal e o esquecimento
Além do retrato das favelas, a exposição oferece uma reflexão mais ampla sobre o Rio de Janeiro como metrópole. Uma cidade que encanta o mundo com seu litoral, sua cultura e sua paisagem, mas que também enfrenta graves desafios sociais. “O Rio de Janeiro tem uma magia, um potencial turístico muito grande… Mas o Rio de Janeiro também tem os seus problemas, tem as suas dificuldades”, alerta Genilson.
O percurso proposto por Favela vista de cima é duplo: convida tanto à admiração quanto à reflexão. As vistas aéreas oferecem beleza, sim, mas também revelam tensões, contrastes e desigualdades. Não se trata de um olhar piedoso, e sim de um olhar crítico e comprometido. “Não escolhi esse tema como uma pegada piedosa. Absolutamente não foi essa a intenção. Foi mostrar realmente como 16 milhões de brasileiros vivem ainda nessas áreas tão carentes”.
Um convite ao público
A exposição no Centro de Estudos Brasileiros representa, para Genilson, uma oportunidade de compartilhar com o público espanhol uma imagem menos conhecida de sua cidade. “Fiquei muito gratificado pelo fato de ter sido selecionado pela Universidade de Salamanca para levar aos estudantes do Centro de Estudos Brasileiros um pouco da realidade de uma metrópole como o Rio de Janeiro”, afirma.
Quem visitar a mostra encontrará muito mais do que imagens. Encontrará perguntas. O que significa o direito à moradia em uma cidade tão desigual? Como se organiza a vida quando o Estado se ausenta? Qual é o lugar da favela na narrativa urbana do Brasil contemporâneo? O que pode a fotografia diante dessas tensões?
Nas palavras do autor: “Uma casa, o seu lar, é o principal desejo de milhões de pessoas no mundo. E essas pessoas também têm o direito à sua casa, a viver seus sonhos”.
O CEB promove desde 2014 uma chamada anual para projetos de Residência Artística de Fotografia, aberta a coletivos ou artistas individuais maiores de 18 anos — que oferece espaços para iniciativas culturais que promovam a cultura brasileira na Espanha. Saiba mais sobre o programa aqui.