Recentemente, o filme brasileiro Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles e estrelado por Fernanda Torres, Fernanda Montenegro e Selton Mello, tornou-se o primeiro longa-metragem brasileiro a ganhar o Oscar de Melhor Filme Internacional. Isso deixa claro que, no Brasil, a produção cinematográfica (ou melhor, a produção audiovisual, que engloba desde o cinema até plataformas de streaming e canais de TV) vive um momento de destaque que deve ser aproveitado. Ainda Estou Aqui merece um programa só para ela, mas enquanto preparamos isso com calma, nesta edição do BioBrasil trazemos outro lado do cinema brasileiro: quatro filmes de terror que marcam um antes e um depois no gênero e que são verdadeiras descobertas para qualquer amante do terror.
Terror psicológico, sangue, monstros que se escondem nas sombras ou, pior ainda, que espreitam na penumbra dos nossos pensamentos… tudo isso e muito mais nesta arrepiante edição do BMQS.
As boas maneiras (2018)

A primeira sugestão é As Boas Maneiras, uma coprodução franco-brasileira de 2018, dirigida e roteirizada por Marco Dutra e Juliana Rojas. A história acompanha Clara, interpretada por Isabél Zuaa, uma enfermeira solitária que vive na periferia de São Paulo e que, ao perder o emprego, busca um trabalho para pagar o aluguel. Assim, entra em contato com Ana (Marjorie Estiano), uma mulher que também vive sozinha, mas em um apartamento de luxo, em um bairro nobre e futurista da cidade. Ana precisa de uma babá para cuidar do filho que está esperando e decide contratar Clara. À medida que a gravidez avança, o clima no apartamento se torna cada vez mais tenso e sombrio.
Ana começa a apresentar comportamentos estranhos. Tem crises de sonambulismo em noites de lua cheia, agravadas pela dieta sem carne imposta por seu médico. Com o tempo, as duas acabam desenvolvendo uma relação amorosa, mas tudo muda repentinamente com o nascimento do bebê… que está longe de ser o que se esperava.
Com uma trilha sonora inspirada nas primeiras produções da Disney, especialmente A Bela Adormecida, e uma fotografia baseada na técnica de matte painting, que dá a São Paulo um aspecto inquietante e desconfortável, As Boas Maneiras é um filme de terror que revisita o mito do lobisomem, abordando ao mesmo tempo questões como sexualidade, divisão de classes e até racismo.
De certa forma, trata-se de uma versão retorcida dos clássicos contos de fadas ou, talvez, da essência real dessas histórias, que envolvem desde estupros até mortes violentas — só que tudo envolto em uma fórmula açucarada que nos faz engolir a pílula sem reclamar.
Morto não fala (2019)

O segundo filme que recomendamos tem o sugestivo título Morto Não Fala, dirigido em 2019 por Dennison Ramalho e estrelado por Daniel de Oliveira, Fabiula Nascimento e Bianca Comparato, entre outros.
Em Morto Não Fala, conhecemos Stênio, um funcionário do necrotério de uma São Paulo violenta que tem um dom peculiar: a habilidade de se comunicar com os mortos. Eles não aparecem como fantasmas aterrorizantes, mas muitas vezes nem sabem onde estão e se surpreendem ao descobrir que morreram. No começo, Stênio lida com isso com naturalidade, até que um cadáver revela que sua esposa o está traindo com o dono da padaria do bairro. Ele decide se vingar da forma mais cruel possível, mas as coisas não saem como esperado, e uma presença fantasmagórica começa a atormentá-lo — e pior, ameaça seus filhos.
Morto Não Fala é um filme brutal, com uma ambientação em um bairro humilde e marcado pela violência. Baseado em um conto homônimo de Marco de Castro, um jornalista que trabalhou por anos cobrindo casos policiais em São Paulo, o longa apresenta uma produção impecável, efeitos especiais impressionantes e uma atmosfera sufocante. Chega um momento em que o espectador não sabe se tudo está apenas na cabeça do protagonista ou se há uma conspiração real acontecendo no mundo dos vivos. E o mais perturbador: não há “mocinhos” na história, pois todos os personagens (até mesmo as crianças!) carregam uma dose de maldade essencialmente… humana.
Canto dos ossos (2020)
Canto dos Ossos é um longa dirigido em 2020 por Jorge Polo e Petrus de Bairros, que acompanha as trajetórias de duas amigas vampiras que tomaram caminhos diferentes na vida. Uma se tornou professora de literatura em uma escola pública de Búzios, cidade turística no litoral do Rio de Janeiro, enquanto a outra continua caçando à noite.
O filme foge do estereótipo clássico do vampiro. Não há galãs misteriosos como em Crepúsculo nem figuras aristocráticas e sedutoras ao estilo de Entrevista com o Vampiro. Os personagens são pessoas comuns, periféricas, próximas do nosso cotidiano, e que, além disso, caminham tranquilamente sob a luz do sol. Eles parecem mais um grupo de amigos do bairro que se reúnem à noite para conversar e beber…
Mas é na escuridão que surgem as monstruosidades, com muito sangue, gore e um toque de erotismo. Alguns veem Canto dos Ossos como uma metáfora da homossexualidade e do modo como os “diferentes” são rejeitados pela sociedade. Embora esse elemento esteja presente, o filme vai além, abordando questões como migração, busca por estabilidade e a tentativa de encontrar um lugar no mundo.
Um aviso: Canto dos Ossos não é um filme para quem gosta de narrativas lineares e convencionais. Os diretores intencionalmente criam uma sensação de incerteza e imprevisibilidade, com personagens que desaparecem sem explicação e outros que surgem do nada ao longo da trama. Uma história de idas e vindas, como a maré.
A sombra do pai (2018)

Nossa última recomendação é A Sombra do Pai, dirigido por Gabriela Amaral em 2018 e estrelado por Nina Medeiros, Júlio Machado e Luciana Paes. A diretora já havia mostrado seu talento no incrível e angustiante Animal Cordial, mas com A Sombra do Pai ela dá uma nova dimensão ao terror.
A trama gira em torno de Dalva, uma menina de nove anos que precisa assumir a responsabilidade de adulta na casa, pois, após a morte da mãe, seu pai mergulha em uma depressão profunda. Um dia, Dalva presencia os rituais praticados por sua tia e começa a acreditar que possui poderes sobrenaturais para trazer sua mãe de volta. Ao mesmo tempo, convence-se de que seu pai está se tornando um zumbi, pois seu estado é cada vez mais apático.
A sucessão de planos de animais mortos ou se alimentando de maneira desagradável vai criando uma atmosfera sufocante, que se intensifica com a relação ríspida e cada vez mais distante entre pai e filha. A montagem também contribui para essa sensação inquietante. A diretora esconde habilmente a revelação do sobrenatural, cortando o plano com a intenção de sugerir o terror, insinuar o que pode estar acontecendo sem mostrá-lo por completo.
Seguindo a linha de clássicos como A Noite dos Mortos-Vivos ou Cemitério Maldito, até mesmo nas cenas diurnas, a iluminação evita cores quentes e aposta em luzes opacas, sombras e brilhos. Enfim, a pura arte de provocar medo.
Por fim, vale destacar que, assim como os outros filmes mencionados, A Sombra do Pai vai muito além dos sustos, propondo uma reflexão sobre o papel do indivíduo na sociedade e sobre como as famílias se tornam disfuncionais e acabam sucumbindo aos seus próprios conflitos. No fundo, a história gira em torno do abandono sofrido por uma menina pequena e de sua crença de que a magia – ou o sobrenatural, neste caso – pode consertar o que parece impossível.
BioBrasil é uma coluna do programa Brasil es mucho más que samba dedicada a divulgar a biografia de expertos, profissionais e personagens (históricos e atuais) da vida cultural, política e social brasileira. Brasil es mucho más que samba se emite todas às terças-feiras, às 17h30, em Rádio USAL. Para sugerir uma pauta ou contatar com a equipe do programa, escreva ao masquesamba@usal.es