Especial RA: Entrevista Ricardo Teles

Segunda entrega do Especial RA 10 anos traz uma entrevista com o fotógrafo brasileiro Ricardo Teles.

#BMQS encerra a temporada 2024-2025 na Radio Universidad de Salamanca com uma série dedicada ao programa de Residência Artística de Fotografia, que celebra 10 anos de trajetória. Serão quatro episódios nos quais conheceremos a vida e a obra dos fotógrafos autores dos projetos expositivos selecionados nesta edição especial da Residência.

Por meio da fotografia, é possível conhecer muito sobre um país, sua cultura e seu povo. E ao longo de 10 anos de Residência Artística, recebemos projetos realmente excepcionais, que revelam o que há de mais original no Brasil, mas também suas tradições, festas, espaços e, claro, sua exuberante natureza.

Em temporadas anteriores, entrevistamos alguns dos fotógrafos responsáveis pelos projetos selecionados (neste link é possível baixar os catálogos das exposições, e aqui estão todos os podcasts com as entrevistas). E como em junho inauguramos a exposição As coisas maravilhosas do sertão, de Gustavo Silva de Almeida — a primeira das quatro mostras selecionadas nesta edição comemorativa —, dedicamos este último mês de transmissões na Rádio USAL a conhecer os nomes e propostas que veremos ao longo do curso 2025-2026 na sala de exposições do CEB.

Esta semana, apresentamos uma entrevista com Ricardo Teles, autor do projeto Terras de Preto, uma exposição absolutamente espetacular sobre as comunidades quilombolas no Brasil.

Os quilombos

Os quilombos foram originalmente refúgios criados por pessoas escravizadas que fugiam das plantações, especialmente nas zonas rurais, durante o período colonial. Esses espaços, escondidos na mata densa ou em regiões de difícil acesso, tornaram-se verdadeiros núcleos de resistência, onde se preservavam tradições africanas, se cultivava a terra e se vivia em liberdade.

Um dos quilombos mais conhecidos foi Palmares, situado no atual estado de Alagoas, que chegou a abrigar milhares de pessoas e resistiu por quase um século. Seu líder mais emblemático, Zumbi dos Palmares, é hoje símbolo da luta por liberdade e pelos direitos do povo negro no Brasil.

Atualmente, estima-se que existam mais de 6 mil comunidades quilombolas reconhecidas ou em processo de reconhecimento em todo o país. Essas comunidades não apenas preservam tradições afro-brasileiras ancestrais, como também enfrentam desafios contemporâneos como o acesso à terra, o racismo estrutural, a falta de políticas públicas e as ameaças do agronegócio e da mineração.

Apesar disso, os quilombos continuam sendo exemplo de resistência e de profunda conexão com a história e o território. E é justamente esse espírito que nosso convidado procurou capturar com sua câmera.

O projeto Terras de Preto

É nesse contexto que nasce Terras de Preto, uma iniciativa fotográfica e documental que retratou, ao longo de quase uma década, nove comunidades quilombolas de diferentes estados brasileiros. Comunidades com rica tradição cultural e muito ativas na luta pelo reconhecimento de seus direitos territoriais.

Esse trabalho foi tema de um documentário exibido pela Globo News, em 2003, e capa da revista Carta Capital em 2002, com o título Os dois Brasis. Essa reportagem recebeu o Grande Prêmio Ayrton Senna de Jornalismo, um dos mais prestigiados do país na área de direitos humanos.

Além do impacto na mídia, o projeto Terras de Preto teve grande repercussão em espaços acadêmicos, sociais e institucionais. Participou de livros como Alma Feminina, sobre a matriarca Dona Maria Ribeiro, do quilombo Jamary dos Pretos; Axé, coordenado pela professora Cremilda Medina; e Frechal, terras de preto, editado pelo Projeto Vida do Negro. Sua importância foi além do simbólico: as imagens do projeto foram usadas em campanhas educativas como Acreditar para Ver, promovida pela Fundação Abrinq, e no site da Procuradoria Geral da República, na seção dedicada à legalização de terras quilombolas.

O livro homônimo, Terras de Preto – Mocambos, Quilombos, publicado em 2002, com textos de lideranças quilombolas e do sociólogo Clóvis Moura, deu origem a exposições em locais diversos como o Congresso Nacional em Brasília (DF), o Museu da Cidade do Recife (PE), a Casa do Brasil em Luanda (Angola) e até uma galeria em Berlim (Alemanha).

Terras de Preto, em suma, não apenas documentou uma realidade pouco conhecida: ajudou também a transformá-la.

O autor

Fotografia de Paulo Vitale (2025).

Ricardo Teles é natural de Porto Alegre (Rio Grande do Sul, Brasil), e desenvolve sua carreira em São Paulo, na área do fotojornalismo e da documentação social. Desde 1994, atua como fotógrafo independente, colaborando com importantes veículos de comunicação brasileiros e participando de reportagens para revistas nacionais e internacionais de destaque. Entre elas, se destaca o trabalho para a National Geographic Brasil, pelo qual recebeu três vezes o prêmio Best Edit de melhor reportagem internacional do mês, nos anos de 2013, 2015 e 2018. Também publicou em meios estrangeiros como a revista alemã Der Spiegel, com reportagens realizadas em diversos países da América Latina. Atualmente, concilia seus projetos autorais com colaborações institucionais e corporativas.

Sua obra foi reconhecida com importantes prêmios, como o Prêmio Militão de Fotografia, concedido pela Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo em 2022, e o primeiro lugar nas categorias Esporte (2022) e Viagens (2016) do prestigioso Sony World Photography Award. Também foi finalista em duas edições do Global Peace Photo Award, promovido pelo Parlamento da Áustria e pela Unesco.

É autor de diversas publicações de caráter artístico, institucional e social. Entre elas, destacam-se o livro e a exposição Terras de Preto, publicado pela editora ABooks em 2004 e premiado com o Prêmio Ayrton Senna de Jornalismo, e o livro Saga (1997), reconhecido pela Fundação Martius Staden por sua contribuição aos laços culturais entre Brasil e Alemanha.

Seu trabalho foi exposto em diversas cidades e festivais internacionais. Podemos citar, por exemplo, a exposição Encantados na Espanha, com apoio da Embaixada do Brasil, que passou pelo Festival Internacional de Fotografia Latitudes em Huelva, o Centro Cultural Matadero em Madri, a Casa Golferichs em Barcelona (2017) e o Palácio Quintanar em Segóvia durante o Hay Festival (2018).

Em 2023, participou do PHOTOMEDFEST, o Festival de Fotografia do Mediterrâneo na Sicília, com a exposição Transbrasilianas, também selecionada para o Discovery Awards em Braga e para o Imago Lisboa Photo Festival em Portugal (2022). Sua obra também integrou a mostra coletiva Terra em Transe, apresentada no Festival Solar de Fortaleza (2018) e no Museu Afro Brasil em São Paulo (2022), entre outras. Parte de sua produção artística compõe os acervos de importantes museus brasileiros, como o MAC Ceará, o MAM-SP e o MASP, por meio do projeto Pirelli.

Os primeiros instantes e instantâneas

A fotografia entrou em sua vida quase por acaso, mas de forma definitiva. Ricardo Teles trabalhava como comissário de bordo, o que lhe permitia viajar por todo o país. E sem grandes pretensões, tendo a câmera como companheira, começou a fotografar as diversas paisagens brasileiras. Com o tempo, seu olhar se transformou: do registro paisagístico à narrativa visual.

E aí, eu comecei a descobrir que o grande lance era com poder contar histórias, de colocar nossa bagagem cultural em função de contar histórias de coisas que me chamavam a atenção, que era interessantes aos meus olhos.

Assim, observou um fenômeno interessante em sua terra natal: no sul do Brasil, comunidades de imigrantes alemães, já em sua quarta ou quinta geração, começavam a migrar do campo para as cidades. Esse foi o tema de seu primeiro trabalho profissional, que deu origem ao livro Saga (1997), premiado pela Fundação Martius Staden.

No Brasil, a gente chamava até de “Alemanha Além-mar” porque era uma outra Alemanha. E como eu tive o intercâmbio na Alemanha, que vi a Alemanha moderna nos anos 80, supermoderna, que saiu de duas guerras, era um contraste muito grande de mundos, eu falei “Essa história precisa ser contada”. Então, eu comecei a fotografar as colônias alemãs lá no Sul e depois isso acabou encontrando uma editora, que é a Terra Virgem, uma editora aqui de São Paulo.

Fotojornalismo como escola

O grande desafio profissional e sua principal escola foi o trabalho como fotojornalista em um dos maiores jornais do Brasil: O Estado de S. Paulo.

Eu acho que a minha grande experiência foi ter trabalhado nos maiores jornais do Brasil, que é O Estado de São Paulo, que é um jornal do século XIX, muito tradicional.

Ao longo dos anos, recebeu reconhecimentos de prestígio nessa área. Mas o fotojornalismo mudou — e ele também. Nos últimos 20 anos, passou a atuar na fotografia corporativa, atendendo pessoas, empresas e laboratórios. Essa experiência lhe permitiu conhecer diferentes aspectos do mundo do trabalho, suas técnicas, equipamentos e tecnologias. Ainda assim, não abandona seus projetos autorais: “por um lado, ganho dinheiro para poder viver, y por outro, gasto em meus projetos”.

Durante suas viagens, começou a observar a riqueza ambiental e social existente nas estradas brasileiras. Assim nasceu Transbrasilianas, o projeto em que está atualmente trabalhando:

Como eu viajo muito, eu comecei a prestar atenção na estrada. O Brasil que é um país continente, e tem uma riqueza muito grande de assuntos na beira das estradas tanto do ponto de vista ambiental, do ponto de vista social, das pessoas que dependem da estrada para viver, então comecei a fotografar isso. É um trabalho muito rico, tem ficado muito rico.

Além de Transbrasilianas, Ricardo Teles desenvolve outros projetos, como Dia de santo, uma espécie de sequência de Terras de Preto, que aborda a diversidade da cultura afro-brasileira e será publicado em breve como livro. Também está produzindo uma série sobre as comunidades indígenas do Parque Nacional do Xingu (Mato Grosso), com um enfoque original: a relação dessas comunidades com a água.

E isso está ameaçado, está cercado por plantações de soja, estão poluindo as águas, estão criando hidrelétricas que estão secando os rios, estão matando as nascentes em torno do Parque. Então, é um paraíso ameaçado. É um também que eu estou me dedicando muito e estou levando à frente.

Terras de Preto

O Terras de Preto é um projeto que até hoje me emociona muito pelas pessoas que eu conheci, pelas pessoas que me receberam...

Esse projeto o emociona profundamente pela vivência junto às comunidades quilombolas. Na entrevista, Ricardo Teles destaca que, embora a luta dessas comunidades seja muito anterior, o marco jurídico que reconhece sua existência e direito à terra é a Constituição de 1988. O projeto Terras de Preto começou entre 1993 e 1994, ainda na era analógica da fotografia. A série reúne imagens em preto e branco de nove comunidades quilombolas espalhadas pelo Brasil — entre elas, seis das maiores em extensão. A escolha pelo preto e branco foi tanto uma preferência estética do autor quanto uma forma de reforçar a proposta do projeto.

Terras de Preto registra o cotidiano dessas comunidades e sua relação com o território. Por isso, parte das imagens foi utilizada por instituições como a Procuradoria Geral da República na defesa dos direitos humanos.

As quarenta fotografias que compõem a exposição Terras de Preto, que receberemos no Centro de Estudos Brasileiros, retratam exatamente isso: a vida, o dia a dia e o entorno das comunidades quilombolas brasileiras. Mas vão além: convidam o visitante a conhecer uma lacuna na história do Brasil, aproximando-o das formas de luta e resistência de uma população que, século após século, segue batalhando por seus direitos.

A exposição será inaugurada no dia 7 de outubro e poderá ser visitada até 21 de novembro de 2025, com entrada gratuita. Para conhecer mais sobre o trabalho de Ricardo Teles, acesse: www.ricardoteles.com.br.

Referências:

Site oficial da Fundação Cultural Palmares.
Instituto Socioambiental (ISA) – Mapa de Comunidades Quilombolas.
Quilombolas: resistência e identidade” – Brasil de Fato.

O CEB promove desde 2014 uma chamada anual para projetos de Residência Artística de Fotografia, aberta a coletivos ou artistas individuais maiores de 18 anos — que oferece espaços para iniciativas culturais que promovam a cultura brasileira na Espanha. Saiba mais sobre o programa aqui.

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