BioBrasil: entrevista Aline Valek

Entrevistamos a autora do aclamado romance "Cidades afundam em dias normais", publicado pela editora Rocco em 2020.

Nesta nova edição de BioBrasil, entrevistamos Aline Valek, uma das vozes mais singulares da ficção especulativa brasileira contemporânea. Escritora, ilustradora e criadora de mundos que vacilam à beira do colapso, Aline fala sobre suas influências, seu processo criativo e sobre o romance Cidades afundam em dias normais (Editora Rocco, 2020, um belo manifesto sobre a importância — e a força — da memória.

Aline Valek: uma criatura híbrida

Foto: Marcos Felipe

Aline Valek nasceu em Minas Gerais, mas cresceu em Brasília e, por isso, define a si mesma como “uma criatura híbrida”. Formada em Comunicação Social, trabalhou durante alguns anos como redatora, elaborando roteiros e peças publicitárias e, embora essa tenha sido sua porta de entrada para a escrita profissional, nunca teve grandes veleidades literárias. Na juventude, queria ser bióloga marinha… algo complicado vivendo no interior do Brasil, onde não há sequer um pedacinho de mar.

Também tentou a sorte no mundo dos quadrinhos, que a apaixona, fantasiando tornar-se a próxima estrela da Marvel.

No entanto, a vida a levou por outros caminhos e sua presença constante na internet, escrevendo regularmente para diferentes veículos como Update or Die! ou Carta Capital, acabou conduzindo-a de forma inevitável à criação de seus próprios mundos.

Na entrevista, afirma que suas fontes de inspiração são muitas e variadas: o cinema, as graphic novels e escritores como Elvira Vigna, autora de suspense com um estilo inteligente e bem-humorado apesar da dureza dos temas que aborda, ou Ariano Suassuna, o inclasificável escritor e dramaturgo nordestino, criador do movimento Armorial.

Fora do Brasil, Aline menciona Virginia Woolf e Ursula K. Le Guin, de quem admira a riqueza do mundo interior dos personagens, e Douglas Adams, autor do mítico Guia do mochileiro das galáxias, por seu inquestionável senso de humor.

Quanto ao seu processo criativo, a entrevistada conta que ele é “muito mutante, muito variável”, pois depende do que está escrevendo naquele momento. Por exemplo, não segue o mesmo caminho ao redigir um texto para uma newsletter ou um podcast do que ao escrever um conto de ficção. Em qualquer caso, afirma ser uma pessoa metódica e tentar passar por todas as etapas do processo: qualquer texto leva tempo e implica pesquisa, busca de fontes…

Escreve muito à mão, em cadernos, porque isso lhe permite organizar as ideias e refletir sobre elas. O mesmo acontece ao escrever cenas ou fragmentos que nem sempre aparecem no texto final, mas que a ajudam a compreender melhor a história.

Para concluir, Aline Valek confessa que a reescrita também faz parte fundamental de seu processo e, sobretudo, a leitura em voz alta, pois isso lhe permite perceber todos os matizes do texto e compreender — de verdade — o que está escrevendo.

"Cidades afundam em dias normais", ou como uma tragédia pode tornar-se cotidiana

Na segunda parte do podcast, falamos do romance Cidades afundam em dias normais (Editora Rocco, 2020), que consolidou a figura de Aline Valek no cenário literário brasileiro.

A trama se passa em Alto do Oeste, uma cidade fictícia localizada na região Centro-Oeste que, certo dia, começa a afundar nas águas de um lago. Não se trata de um apocalipse convencional, no qual tudo se desintegra em questão de dias ou horas. É um desaparecer quase doce, que não interfere no cotidiano de seus habitantes até o final, até que a cidade simplesmente deixa de existir.

Diante de uma premissa como essa, a pergunta seguinte era inevitável: de onde surge uma ideia assim?

Aline conta que tudo começou quando se mudou de Brasília para São Paulo. Em seu novo apartamento, encontrou uma caixa que pertencia à inquilina anterior e que, por algum motivo, havia sido esquecida. Por fim, decidiu abri-la e encontrou fotografias, cartas e fitas cassete. A partir daí, começou a especular sobre o que teria acontecido àquela mulher, o que lhe deu a ideia de escrever uma história que não fosse sobre os objetos da caixa em si, mas que transmitisse ao leitor a mesma sensação: ao abrir o livro, deparar-se com vestígios de vidas alheias, fragmentos desconexos e esquecidos a serem decifrados.

Assim nasceu Cidades afundam em dias normais, cujo enredo se constrói a partir de fotografias, diários e registros diversos, espalhados como sementes ao vento. Pequenos fragmentos da vida de muitas pessoas, que Aline costura metodicamente, como quem faz um bordado ou uma renda de bilros. “Por isso escolhi que a protagonista fosse uma fotógrafa, para ter essa perspectiva da fotografia na narrativa”, afirma.

Por outro lado, chama a atenção o fato de que a maioria dos personagens de Cidades afundam em dias normais sejam mulheres. Aline considera “importante reivindicar essa voz feminina, porque normalmente as histórias são contadas a partir da perspectiva dominante, masculina, branca…”.

Assim, são elas que sustentam o peso do relato: Kenia, a fotógrafa; Tainara, sua amiga de infância; a professora da escola… E o interessante é que cada perspectiva transforma a história. Porque, além do ponto de vista feminino, Aline Valek busca dar voz àqueles que geralmente não falam, aos que não costumam ser levados em conta: pessoas comuns, que vivem na periferia e que raramente têm direito à própria narrativa.

A realidade supera em muito a ficção

Aline Valek  tem um estilo indefinível, no qual o insólito desempenha um papel importante, mas não essencial. Por isso, perguntamos sobre essa escolha. Ela confessa sentir-se muito atraída pelo fora do comum, tanto por fazer parte de sua formação como leitora quanto por considerá-lo um verdadeiro desafio especulativo. Em suas palavras, escrever

é uma forma de tentar entender o mundo, tentar entender as pessoas, por que elas funcionam dessa maneira. Ao pensar em cenários absurdos, com uma lógica que foge da realidade, estou criando um campo de testes para experimentar os personagens, o que fariam em determinada situação. (…) Às vezes, o absurdo é o próprio comportamento humano, que insiste em repetir os mesmos erros. [Por isso], o insólito não está tão distante da realidade

Para encerrar, perguntamos a Aline Valek como é ser escritora no Brasil, especialmente no campo do fantástico. Ela afirma que existe um forte preconceito em relação ao que se chama de “literatura especulativa”, considerada inferior à chamada “literatura séria”. Para Aline, isso não faz sentido, pois “a literatura é entretenimento, e a boa literatura serve para entreter e fazer pensar. É como se a ficção científica não tivesse essa vocação política, de levantar questões profundas”.

Felizmente, há muitos escritores e escritoras despontando atualmente do outro lado do Atlântico, como Carol Chiovatto, Fernanda Castro ou Verena Cavalcante, algumas das quais já passaram pelos microfones da Radio USAL.

Para saber mais

Para conhecer melhor o trabalho de Aline Valek, você pode segui-la no Instagram ou assinar sua newsletter Uma palavra, onde compartilha regularmente textos inéditos e os bastidores de seu processo criativo. E, claro, não deixe de visitar seu site ofical, onde estão reunidos todos os seus trabalhos, além de pequenas surpresas como o audioconto «Nome sujo», incluído na obra Neurose a varejo, disponível gratuitamente para escuta.

Você também pode ouvir o podcast que dedicamos à obra de Aline, disponível aquí.

Encerramos o programa com a voz inconfundível de Belchior e a canção «Conheço meu lugar».

BioBrasil é uma coluna do programa Brasil es mucho más que samba dedicada a divulgar a biografia de expertos, profissionais e personagens (históricos e atuais) da vida cultural, política e social brasileira. Brasil es mucho más que samba se emite todas às terças-feiras, às 17h30, em Rádio USAL. Para sugerir uma pauta ou contatar com a equipe do programa, escreva ao masquesamba@usal.es

Compartir

Relacionado:

Mergulhamos na obra do jornalista, humorista e apresentador Jô Soares, um verdadeiro ícone da televisão brasileira.
Nesta emissão de BMQS, entrevistamos o escritor Roberto Denser, que nos fala sobre seu mais recente sucesso, o romance pós-apocalíptico “Colapso”.
Mergulhamos na ficção brutal de Roberto Denser, que com seu romance “Colapso” deixou uma marca indelével na ficção científica distópica contemporânea.
Nesta edição, passeamos pela vida e obra de Aline Valek, escritora, ilustradora e criadora de mundos que cambaleiam à beira do colapso.
Anterior
Próximo