“Brasil con ñ” entrevista con Carlos Benítez Trinidad

Carlos Benítez Trinidad fala de suas pesquisas sobre as populações indígenas durante a Ditadura no Brasil.

Esta nova entrega da coluna “Brasil con ñ” traz uma entrevista com Carlos Benítez Trinidad, professor de História da América da Universidad de Salamanca.

A entrevista teve como tema suas pesquisas sobre as populações indígenas durante a Ditadura no Brasil. Carlos Benítez conta que o seu interesse nas comunidades indígenas havia começado já durante o mestrado, cujo trabalho esteve dedicado às comunidades indígenas Kichwa, da Amazônia equatoriana. Durante os três meses em que esteve vivendo com a comunidade, percebeu que havia uma questão identitária que merecia ser pesquisada:

pude perceber que havia um sério conflito entre eles na questão quase identitária, na maneira em que eles haviam idealizado a forma de ser indígena, sobretudo indígena amazônico, com os estereótipos e os preconceitos que existiam sobre as próprias populações indígenas, também a imagem que se projetava sobre eles inclusive a nível internacional.

O estudo das alteridades aplicado à História veio no doutorado. A partir da leitura de autores clássicos da interpretação do país, como Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre, entre outros, começou a pesquisar o momento de inflexão em relação à construção de narrativas que pretendiam explicar os povos indígenas na sociedade brasileira. Em palavras do entrevistado:

Investigando, percebi que o movimento indígena, os movimentos sociais pró-indígena, movimento ecologista, a Teologia da Libertação, surgem durante a Ditadura. Algo aconteceu ali, teve que acontecer algo para que exista uma espécie de movimentos contra hegemônicos, que estão tentando criar outros paradigmas para entender os povos indígenas e para dar-lhes espaço, e de se relacionar com eles. Evidentemente, foi quando pesquisando, me dei conta de que sim, de que a Ditadura, para mim é esse momento de ruptura. Nos anos 60, os militares se apropriam de certas noções tradicionais da forma que o Brasil tinha de entender o estado nação, como é “ordem e progresso”, que é uma ideia positivista, e pervertem essa ideia, convertem-na em segurança e desenvolvimento, levando-a ao extremo do desenvolvimentismo e do autoritarismo mais cruel. E o mesmo acontece com o indigenismo, o mesmo acontece nas políticas públicas com respeito aos povos indígenas. E é nesse período que há um pico de massacres e de perseguição, de roubo de terras etc., que provoca uma resposta, uma espécie de resistência.

Para Carlos Benítez, a Ditadura no Brasil tentou refundar o indigenismo, com um marcado caráter militar e desenvolvimentista que, por sua vez, marcou também o início da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), hoje Fundação Nacional dos Povos Indígenas. As consequências desse movimento, vemos na construção (pelo menos, no que foi construído) da Rodovia Transamazônica, o sequestro de terras indígenas, além da perseguição, assassinato e massacres dessas comunidades indígenas. Na entrevista, Carlos Benítez afirma que havia sido instaurado por parte do Estado brasileiro da época um verdadeiro discurso de guerra, de combate à natureza e, igualmente, às comunidades indígenas.

Em geral, a única coisa que a ditadura fez foi continuar uma lógica de violência histórica. É certo que na ditadura há uma capacidade administrativa e tecnológica maior, e isso se vê claramente no fato de que é a ditadura, os governos ditatoriais, que pela primeira vez, apesar de que já haviam tentado antes, mas é a primeira vez que os governos brasileiros começam projetos de ocupação efetiva da Amazonia até esse momento. É mais, há uma narrativa bélica espetacular, há uma propaganda da ditadura e cartazes da ditadura dizendo “A Amazonia já era”, “Já chega de lendas”, “O inferno verde já não existe mais”, uma espécie de guerra contra a natureza, uma narrativa bélica contra a própria natureza.

Em contraposição a esse discurso de ódio, Carlos Benítez faz referência à atuação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), muito vinculado à Teologia da Libertação, movimento de caráter mais progressista dentro da Igreja Católica, além da atuação de intelectuais como Darcy Ribeiro, também da Antropologia brasileira, na tentativa de buscar um diálogo com as comunidades indígenas para a criação de um espaço de construção e definição de suas identidades e movimento de resistência, mas a partir das próprias comunidades.

Ainda sobre a violência que o Estado brasileiro perpetrou sobre as comunidades indígenas durante a ditadura, para Carlos Benítez, o período ditatorial representou, na verdade, um ápice de violência, que perdura durante toda a história do país. E sobre esse aspecto, critica o Relatório da Comissão Nacional da Verdade do Brasil por ter dedicado apenas um único capítulo às comunidades indígenas e campesino.

E isso é interessante, porque, para mim, é certo que como pessoas, como habitantes do Brasil [as comunidades indígenas e os campesinos] deviam ter mais espaço, ademais, um espaço que fosse proporcional ao número de vítimas. Eu creio que uma das coisas mais racistas que demonstrou este Relatório [da Comissão Nacional da Verdade do Brasil] é que se considerava vítima oficial os 400 e tanto mortos da ditadura, (…) ativistas, estudantes da Universidade, militantes comunistas, (…) e aí tem uma espécie de pequena biografia cada uma dessas pessoas e há uma quantidade enorme de documentação sobre como foram assassinados, torturados e tal… Bom, quando chega a parte indígena, há também uma descrição das lógicas, por suposto, mas basicamente te dizem que morreram 8 mil e tanto, que nós somos conscientes de que são uma fração muito pequena dos que realmente morreram. Não lembro agora a cifra, mas estamos falando de cerca de 9 mil pessoas, não se pode dar a eles um anexo e a 400 pessoas quase 2 volumes, ou seja, aqui há um viés espetacular que deve ser observado; consideram menos pessoas aos indígenas ou não lhes consideram vítimas da ditadura, e isso é interessante também, porque aqui eu não posso estar mais de acordo, e é que matam indígenas desde que os europeus chegaram ao Brasil.

As suas pesquisas mais recentes tratam da resistência indígena no período ditatorial, mas a partir do humor gráfico. No artigo “«Um barril de pólvora

na Amazônia»: humor gráfico, resistencia indígena y subversión política en la revista brasileña Porantim (1978-1987)”, publicado em coautoria com Mélanie Toulhoat, os autores analisam a construção de uma contra narrativa e críticas sociais ao discurso que a Ditatura tentou impor à sociedade brasileira da época.

Ao longo da entrevista, Carlos Benítez nos oferece a sua interpretação sobre as práticas de violência que o Estado brasileiro aplicou às comunidades indígenas durante a ditadura. Se bem é certo que vemos avanços nas contribuições, o tema ainda carece de maiores análises. Mas, como diz o ditado, “começar bem é ter feito a metade”.

Para saber mais:

Benítez Trinidad, C. (2017). Un espejo en medio a un teatro de símbolos el indio imaginado por el poder y la sociedad brasileña durante la dictadura civil-militar (1964-1985). Tese de doutorado, Universidad Pablo de Olavide, Espanha.

Benítez Trinidad, C. (2018). A questão indígena sob a ditadura militar: do imaginar ao dominar. Anuário Antropológico, 43(1). DOI: https://doi.org/10.4000/aa.2986

Benítez Trinidad, C., & Toulhoat, M. (2024). “Um barril de pólvora na Amazônia”: humor gráfico, resistencia indígena y subversión política en la revista brasileña Porantim (1978-1987). Ayer. Revista De Historia Contemporánea, 1-30. DOI: https://doi.org/10.55509/ayer/2082

Comisión Nacional de la Verdad de Brasil (2017). Informe de la Comisión Nacional de la Verdad. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca. 

Carlos Benítez é licenciado em História pela Universidad de Cádiz, mestre em Estudos Americanos pela Universidad de Sevilla, e doutor em coorientação na Universidade Federal da Bahia e na Universidad Pablo de Olavide, como bolsista do Ministério de Educação e Cultura do Brasil, pesquisador pós-doutoral no Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa no grupo História Agraria e Política do Mundo Rural, e no Centro de Pesquisa Interuniversitário de Paisajes Atlánticos Culturales da Universidad de Santiago de Compostela.

Brasil con ñ é uma coluna dedicada a divulgar pesquisas sobre o Brasil na Espanha do programa Brasil es mucho más que samba, emitido em Rádio USAL, todas às terças-feiras, às 17h30. Para sugerir uma pauta ou contatar com a equipe do programa, escreva ao masquesamba@usal.es

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