Nesta emissão de BMQS trazemos uma entrevista com Wladimir Vaz, editor e responsável pelo selo editorial La Abaporu, e com Tive Martinez, músico, poeta e traductor da editora. Os entrevistados contam sobre o último de seus trabalhos, a tradução ao espanhol da autobiografia de Luís Capucho Cinema Orly.
Quem é Luís Capucho?
Luís Capucho é um autor pouco conhecido na Espanha. Tive Martínez explica que se trata de um personagem polifacético e que há muitas formas de aproximar-se a ele. Luís Capucho é músico, compositor, cantor, bloguero desde o final da década de 90, romancista e pintor. Como artista gráfico, Tive destaca, por exemplo, a série intitulada “As vizinhas de trás”, inspirada nas vizinhas do pátio de trás, ainda que fosse ampliando o seu mundo pictórico a outros âmbitos.
Além de um Luís artista, há um Luís “ícone”, uma referência no mundo LGTBq brasileiro. Sem ser um ativista propriamente, Luís reivindicou sua opção vital através de cada gesto e de cada trabalho, de forma que seu modo de vida atravessa a suaobra de forma clara e sem tabús. Por isso, ele recebeu vários prêmios, incluindo a medalha de reconhecimento ao mérito artístico e de defesa dos direitos LGTBq da Prefeitura de Niterói (Rio de Janeiro), cidade onde reside. Autor de obras como Rato (Editora Rocco) e a mais recente Diário da piscina (Editora É selo de língua), Wladimir Vaz conta porquê escolheu Cinema Orly para ser o primeiro romance de Capucho traduzido ao espanhol.
Casualidades da vida, um dia ele encontrou um concerto de Luís num pequeno bar do Rio. Para sua surpresa, descobriu que era uma das pessoas mais brilhantes que já havia cinhecido: “Uma pessoa que através da sua luz pessoal é capaz de transformar o profano em algo sagrado, algo mágico”, confessa.
Wladimir guardou essa experiência e, com o tempo, e graças a um amigo em comum, conheceu pessoalmente Luís Capucho e Tive Martínez. Esse último lhe revelou que há mais de 10 anos havia traduzido ao espanhol Cinema Orly e que estava encontrando muitas dificultades para conseguir uma editora que o publicasse. Nessa época, Wladimir trabalhava na editora La Abaporu, e achou que era um sinal de que devia trazer esta obra ao público espanhol.
Inciso: La Abaporu
Quem tiver interesse em literatura marginal, La Abaporu é um selo da editora galego-portuguesa-brasileira Uratau. O seu nome já é uma declaração de intenções. Abaporu é o título do famoso quadro da artista brasileira Társila do Amaral, mas também é uma palavra de origem tupi, que significa “pessoa que come outra pessoa”. Wladinir diz que a “antropofagia” está presente na cultura brasileira (de fato, há um manifesto ao respeito!) e por isso, ele e seus companheiros decidiram batizar o selo este nome. Você poderá encontrar lá obras da poetisa mexicana Alma Karla Sandoval e a tradução ao espanhol da peça teatral galega Santa Inés, ambas com um marcado caráter feminista e reivindicativo.
O desafio de “Cinema Orly”
Tive Martínez conta na entrevista que é um poeta, mas que traduziu muitas obras da literatura hispano-americana ao inglês, e Cinema Orly é a sua primeira tradução do português. Confessa que é um homem de desafios, que gosta quando o texto é difícil. Sobre o trabalho de tradução de Cinema Orly, Tive conta que, no início, teve vontade de encher o texto de notas de pé de página, com medo de não ser capaz de transmitir ao leitor as matizes, não só do idioma, mas da cultura brasileira. Com o tempo, percebeu que num mundo globalizado onde vivemo, qualquer pessoa poderia resolver suas dúvidas com um simples clique, e finalmente eliminou todas as notas explicativas.
Outra dificuldade que enfrentou foi o slam gay da obra, já que se trata de códigos muito específicos, e muito dos anos 90. Há palavras que hoje têm outro sentido ou que não se usavam, como o caso de pessoas “trans”. Quando Luís Capucho escreveu Cinema Orly não se empregava “trans”, somente travestis. Então, o que fazer? Tive decidiu mantener a essência da obra e deixar travestis como tal.
De qualquer forma, mesmo sem notas de pé de página, a tradução de Tive inclui um pqueno glossário que resolverá qualquer dúvida do leitor mais inquieto.
Peixe Abissal
Excurso: em janeiro deste anos, foi lançado na 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes (Minas Gerais) o documentário “Peixe Abissal”, baseado na vida e na obra de Luís Capucho. Trata-se de um trabalho de ficção documental, dirigido por Rafael Saar no qual, conta Tive, “é como se Luís levasse no ombro a câmera e filmasse o seu dia a dia, mas também seu passado e seus desejos. A crítica avaliou muito bem essa mistura entre ficção e realidade”.
O título “Peixe Abissal” é significativo, porque em Cinema Orly, o próprio Luís se descreve muitas vezes como o peixe traíra, um peixe de água dolce que se afunda no lodo, e as pessoas que frequentam o cinema como lagartos, como seres surgidos de um barro primordial. Rafael Saar utiliza essa imagem inquietante para descrever a origem dos desejos de Luís. Tive Martínez destaca uma cena chave do documentário na qual Ney Matogrosso aparece como uma sereia, que retira Luís do fondo do mar, rescatando-o e levando-o até a praia. Uma metáfora de como as pessoas, às vezes, se perdem na escuridão e necessitam a ajuda de um ser excepcional para seguir adiante.
Além de escritor e pintor, Luís Capucho é (principalmente!) músico. A sua coarreira começou em 1993, com canções como “Maluca” (interpretada por Cássia Eller uns anos depois), “Minha casa é um céu” e a fantástica “O amor é sacanagem”, e os discos Lua singela (2003), Cinema íris (2012) e Poema maldito (2014).
Em primeira mão, comunicamos que ao longo deste ano será lançado o disco homenagem La vida es libre, com versões em espanhol e inglês de algumas das canções mais conhecidas de Luís. O disco é uma iniciativa do próprio Tive Martínez que pensa que os homenagens devem ser prestadas em vida e, considerando o estado de saúde de Luís, decidiu não esperar mais. Com a ideia de aproximar a música de Luís Capucho ao mundo hispano-falante, o disco inclui versões de “Maluca” e “Eu quero ser sua mãe”, com artistas espanhóis, brasileiros e americanos.
Como sempre, fechamos o programa com música. E nesta entrega, oferecemos uma canção de Luís Capucho: “Poema maldito”, com letra de Tive. Agradecemos a Tive Martínez e Wladimir Vaz pela oportunidade da entrevista em Rádio USAL e desejar os melhores votos de boa continuidade nos projetos futuros.
Para saber mais
Lista de músicas que aparecem em Cinema Orly
Spotify de Luís Capucho
Canal de YouTube de Tive Martínez: https://youtube.com/@tiotive