No primeiro programa de BMQS de 2024, depois do recesso de Natal, trazemos um entrevistado excepcional: Samir Machado de Machado. Escritor, editor e disigner, Samir é autor de alguns livros bem originais e premiados dos últimos anos, como Tupinilândia que, em 2021, recebeu o Jabuti na categoria de melhor livro brasileiro publicado no exterior e Homens elegantes que recebeu o reconhecimento do Prêmio Açorianos em 2017, na categoria de melhor narrativa lonfa. Nada melhor que começar o ano com boa literatura!
Samir Machado2 : al origem de um aventureiro
Uma das grandes incógnitas é se um escritor nasce ou se faz. No caso de Samir Machado de Machado a inclinação para contar histórias foi algo constante em sua vida. Em casa sempre teve à mão quadrinhos e revistas como a Superinteressante e a National Geographic. Depois de ler muito (e de ver muitos filmes!), começou a sentir a necessidade de contar as próprias histórias. Aos vinte anos, participou de um Workshop de criação literária onde encontrou Luiz Antonio de Assis Brasil, um dos grandes autores brasileiros de romance histórico. Foi assim que começou a levar a sério a ideia de se tornar escritor.
Em 2007, fundou com vários amigos a Não Editora, uma editora independente com a qual publicou seus primeiros trabalhos. Entre eles, Samir destaca uma antologia de relatos de jovens autores – como ele mesmo – intitulada Ficção de Polpa, com contos de ficção científica, horror e fantasia, no melhor estilo Pulp da década de 1930-1940. Na entrevista, o escritor se confessa fã desses gêneros e que começou a escrever pensando que nasceria uma grande saga brasileira de fantasia… no final não terminou nada bem!
No entanto, aprendemos dos erros e com a tal experiência percebeu duas coisas: um, que para ser escritor tinha que ler mais (mas, muito mais!) e, dois, que apesar de que as histórias não eram boas, alguns personagens criados eram interessantes. Assim, decidiu resgatá-los e continuar trabalhando neles para outros relatos não fantásticos, mas de caráter histórico.
Foi assim que nasceu o seu primeiro romance Quatro soldados (Rocco, 2013) do qual saiu o segundo, Homens elegantes (Rocco, 2016), uma aventura de capa e espada, que é uma mistura entre James Bond, de Ian Fleming e Os três mosqueteiros, de Alejandro Dumas. O capitão Alatriste de Arturo Pérez Reverte e o realismo mágico de Jorge Luis Borges são outras das grandes fontes de inspiração desse relato.
Mundos distópicos, salões ilustrados e algum assassinato
Esses primeiros trabalhos e, especialmente, o seu terceiro romance Tupinilândia (Todavia, 2018), que conta com uma edição francesa mito mais vendida que a versão nacional, abriram os olhos a Samir para a realidade do mercado literário brasileiro. Samir Machado de Machado afirma que, no Brasil, os leitores sentem um grande apego ao estilo realista, deixando a fantasia e a ficção científica em segundo lugar.
A obra de Samir é rompedora em muitos sentidos. Aposta pela pura aventura e entretenimento, além de pretender subverter uma ideia dominante nesse gênero desde o século XIX: a do europeu protagonista que descobre um mundo ignoto. Seus textos refletem sobre o papel dos antigos colonizados e a busca por uma identidade própria e, para isso, não dúvida virar de cabeça par abaixo qualquer ideia pré-concebida. Assim, Homens elegantes (Rocco, 2016), por exemplo, tem como protagonista um soldado brasileiro do século XVIII que viaja a Londres para conhecer as terras “salvagens” e “exóticas” da Europa ilustrada.
Outro grande exemplo dessa forma tão interessante de mudar de perspectiva é o romance Corpos secos (Alfaguara, 2020), escrito com Luisa Geisler, Marcelo Ferroni e Natalia Borges Polesso. Trata-se de uma história de zumbis made in Brazil. Tudo começou com uma discussão sobre se era possível tirar dos mortos-vivos todos os elementos que levam da da cultura norte-americana, partindo do mesmo nome, “zumbi”, que é uma apropiação da religião vodu.
No folclore brasileiro existia a figura dos “corpos secos”, pessoas que na vida eram tão perversas que não queriam sua alma nem no Céu nem no Inferno e, ao morrer, permaneciam vagando como simples corpos secos. A partir dessa ideia, começaram a fantasiar sobre uma epidemia de mortos-vivos e todos os problemas estructurais (econômicos, políticos, culturais…) que algo assim podia provocar na sociedade brasileira. O livro, escrito no segundo semestre de 2018, foi uma reação dos quatro autores ao clima de confrontação e mal-estar gerado pela chegada ao governo de Jair Bolsonaro, acompanhado de seu discurso de ódio, do qual não escaparam nem as mujeres, nem a comunidade LGTB+ e nem a população afro-brasileira. Corpos secos foi publicado em abril de 2020, justamente quando a pandemia de covid-19 chegava ao Brasil, que marcou uma estranha coincidência.
Na entrevista, Samir conta que as distopias e a ficção científica em geral são uma boa ferramenta para falar, de uma maneira diferente, de problemas e preocupações contemporâneas à autoria. O seu último livro, O Crime do Bom Nazista (Todavia, 2023) começou a ser escrito em 2020, quando o Brasil estava submetido a um governo de direita muito autoritário e todos permaneciam confinados em casa por culpa da pandemia. Assim surgiu a ideia de um grupo de pessoas isoladas dentro de um zepelim, cercadas de nazis, e que além disso, tinha que enfrentar um crime inesperado… dá para pedir mais?
Lost in translation?
Alguns dos livros de Samir Machado de Machado, como Tupinilândia e O Crime do Bom Nazista, foram traducidos a outros idiomas; o primeiro, ao francês e o segundo está a ponto de ser publicado em inglês. Por isso, para terminar a entrevista falamos sobre o processo de tradução, se era possível para um leitor não brasileiro, mergulhar nos relatos, ou se algumas coisas se perdem no caminho. Para Samir, no caso de Tupinilândia, o tradutor tinha vivido vários anos no Brasil, e além de conhecer o idioma, também conhecia a cultura do país. A forma que o tradutor encontrou para resolver alguns problemas foi utilizar notas de rodapé, explicando ao leitor conceitos, ideias e acontecimentos históricos que podiam ser mais difíceis de entender. O resultado surpreendeu o próprio Samir que, até o momento, não era consciente das especificidades brasileiras, alguns detalhes muito peculiares da sua coultura presentes na obra… e até lhe ajudou a ver a sua cultura desde a alteridade.
Para saber mais, siga Samir Machado de Machado no Instagram, Facebook e Twitter. Também recomendamos a entrevista com a historiadora e divulgadora brasileira Mary del Priore.