BioBrasil: entrevista Ignacio Berdugo e Pedro Dallari

Uma entrevista para celebrar o 10º aniversário da entrega do relatório da CNV à presidência da República.
No dia 10 de dezembro de 2014, o Relatório da Comissão Nacional da Verdade do Brasil foi entregue à presidência da República, em um ato solene realizado no Palácio do Planalto (Brasília). Pouco depois, em 2015, foi inaugurada na Faculdade de Direito da USAL a primeira exposição fotográfica sobre os trabalhos da Comissão e, em 2017, a Ediciones Universidad de Salamanca publicou a obra Relatório da Comissão Nacional da Verdade do Brasil, com a tradução para o espanhol de partes essenciais do Relatório. Neste podcast, BMQS entrevista os professores Ignacio Berdugo (USAL) e Pedro Dallari (Universidade de São Paulo, USP, Brasil), que participam dos eventos organizados pelo CEB e pelo Instituto de Iberoamérica para celebrar esta importante efeméride, destinados a refletir sobre o ocorrido nesta última década no Brasil.

Seminário sobre o legado da Comissão Nacional da Verdade (CNV)

O Centro de Estudos Brasileiros oferece um seminário para comemorar o 10º aniversário da entrega do Relatório, intitulado “Justiça, memória e democracia. O legado do relatório da Comissão Nacional da Verdade no Brasil dez anos depois”. Segundo o Prof. Ignacio Berdugo, o encontro tem um caráter internacional e debaterá sobre

o que juridicamente englobamos como justiça transicional (…) que tem sempre como ponto de partida conhecer o que aconteceu. E essa é a contribuição chave, sem dúvida, da Comissão Nacional da Verdade, no caso do Brasil e de outros países que estiveram em situações análogas. Primeiro conhecer o que aconteceu para poder adotar medidas com base no ocorrido (…) Existe também uma memória coletiva e essa memória coletiva é fundamental que esteja alicerçada em fatos.

Para lém de conhecer a verdade, Ignacio Berdugo afirma que outro tema em debate no seminário será

a tensão que sempre ocorre entre exigências jurídicas e exigências políticas, que às vezes não coincidem. (…) Aqui estamos diante de crimes cometidos pelo poder, que atentam gravemente contra os direitos humanos. (…) O problema é: e agora? Sabemos, conhecemos a verdade, e agora, o que acontece? (…) Pois então, o novo Estado, o Estado democrático que se constrói sobre as ruínas do Estado que não possuía tal condição, precisa tomar decisões. O problema é que essas decisões estão politicamente condicionadas.

A segunda atividade, vinculada a este evento e também mencionada na entrevista, é a exposição Direito à memória, à verdade e à justiça. A Comissão Nacional da Verdade investiga as graves violações de direitos humanos perpetradas pela ditadura militar no Brasil (1964-1985). Trata-se de uma mostra que reúne uma seleção de mais de 50 fotografias da exposição original sobre a Comissão Nacional da Verdade, inaugurada pela primeira vez em novembro de 2015. Como destaca o professor Berdugo, a exposição, além de oferecer uma visão geral sobre os diferentes campos de atuação da Comissão, constitui uma homenagem sincera a Vivien Ishaq, pesquisadora do Arquivo Nacional em Brasília (DF, Brasil) e gerente-executiva do Relatório da CNV.

CNV 10 anos depois

Na segunda parte da entrevista, o Prof. Pedro Dallari compartilha uma reflexão acerda do período que vai da destituição de Dilma Rousseff até o final do governo Bolsonaro, sobre medidas jurídicas tomadas pelos ministérios públicos ou pelas Comissões Estaduais da Verdade, à luz do que foi revelado pelo Relatório. Pedro Dallari diz que o principal efeito do Relatório foi esclarecer a situação factual, expor a verdade. Nesse sentido, Dallari afirma:

Hoje ninguém mais contesta que houve tortura, que houve repressão no Brasil, que houve assassinatos, mortes, desaparecimentos forçados... Ou seja, isso é indiscutível e foi o grande mérito da Comissão.

Terminadas as atividades de investigação da CNV, em dezembro de 2014, ficava a cargo do Ministério Público e dos órgãos de justiça dar continuidade às investigações. Assim, dois fatores, um jurídico como a postura do Supremo Tribunal Federal ao considerar que a anistia concedida aos militares que participaram das atividades da ditadura não poderia ser ignorada, e outro político, neste caso, a ascensão da extrema-direita liderada por Jair Bolsonaro, impediram o avanço no processo de julgamento e condenação dos culpados pelos crimes cometidos. No entanto, há esperança.

Pedro Dallari conta que uma das medidas adotadas pelo governo de Bolsonaro foi a extinção da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, que tinha a missão de localizar os restos mortais de quase 200 pessoas que continuam desaparecidas. O novo governo de Lula reativou essa Comissão. Para ele, o problema reside em que

o tempo vai passando e a maioria das pessoas que tiveram relação direta com a repressão já está morta. Do ponto de vista da Justiça, o tempo é um inimigo (…) Por isso, o mais importante é que o que foi demonstrado [pelo Relatório] tenha impacto em mudanças políticas, jurídicas e institucionais no Brasil, principalmente nas Forças Armadas.

Para Dallari, isso é algo que o governo de Lula pode fazer.

O que o Relatório da CNV pode oferecer para futuras investigações?

A última parte da entrevista esteve dedicada ao porvir das investigações, o que ainda deve ser investigado sobre esse período histórico sombrio. Para Ignacio Berdugo, há vários campos, desde a arqueologia forense até as próprias causas dos fatos, ou seja, o porquê de as coisas terem acontecido. Berdugo afrima:

Em qualquer conflito importante, há atores que aparecem e outros que não aparecem diretamente. Esses atores que não aparecem são os que deveriam ser investigados. Sempre se soube que algumas operações de repressão das Forças Armadas nos anos duros, nos anos de chumbo dos seus governos, foram financiadas por empresas multinacionais de outros países. Seria necessário saber por quê, em troca de quê.

Ignacio Berdugo ainda menciona um aspecto curioso, que ele chama de “a luta pelo relato”. E conclui:

Os fatos são contados de forma diferente dependendo de quem os conta e, agora, com novas ferramentas como as redes sociais (...) E você percebe que a verdade, o que realmente aconteceu, é muito diferente do que te contam que aconteceu.

Por sua vez, Pedro Dallari afirma que a Universidade tem um papel importante, pois ainda há muito a ser investigado:

Por um lado, os fatos, há muitos fatos que não são totalmente conhecidos (...). Depois é necessário identificar as relações causais entre este período da ditadura e o que ocorre hoje no Brasil. O fato de que ainda haja muita tortura nas instituições de segurança pública no Brasil tem uma relação direta com o fato de que não se combateu o que ocorreu no período da ditadura.

Para mais informações, visite o site NACE CNV-Brasil, uma iniciativa da Universidade de São Paulo, para reunir, sistematizar e disseminar documentos e informações relativas às atividades e ao Relatório da CNV.

Consulte aqui os dois volumes do Relatório da Comissão Nacional da Verdade do Brasil publicados pela Ediciones Universidad de Salamanca. Também pode ler o terceiro número da Revista de Estudios Brasileños, cujo Dossiê temático é dedicado à Ditadura e ao trabalho da CNV e, claro, apreciar o catálogo da exposição “Direito à memória, à verdade e à justiça”.

Os entrevistados

IGNACIO BERDUGO é Professor Emérito de Direito Penal na Universidade de Salamanca, onde também foi Reitor entre 1994 e 2003. Doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madrid, desempenhou papéis como Vice-reitor e Vice-decano na mesma instituição. Suas linhas de pesquisa abrangem os direitos humanos, a dogmática penal, o terrorismo, a corrupção e a responsabilidade penal das pessoas jurídicas. De janeiro de 2013 a maio de 2022, foi diretor do Centro de Estudos Brasileiros da USAL, instituição que ele próprio criou durante seu exercício como reitor. Em 2019, foi investido Doutor Honoris Causa pela Pontifícia Universidade Católica do Peru, em reconhecimento por suas contribuições ao desenvolvimento da doutrina jurídica contemporânea no campo do direito penal.

PEDRO DALLARI é Professor Titular de Direito Internacional no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP), onde também atuou como Diretor e Vice-diretor. É coordenador do Centro Ibero-Americano e da Cátedra José Bonifácio na USP. Entre 2013 e 2014, foi membro e coordenador da Comissão Nacional da Verdade do Brasil. Suas áreas de pesquisa incluem a globalização, o direito internacional e a governança global.

Música no programa

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