BioBrasil: entrevista Gracineia Araújo

Conversamos com a autora do livro de contos "A Amazônia por dentro. Histórias fantásticas da selva".

Neste podcast do BMQS, trazemos uma emocionante entrevista com Gracineia Araújo. Natural do sertão baiano, ela é doutora em Espanhol: Linguística, Literatura e Comunicação pela Universidade de Valladolid e, atualmente, trabalha como professora adjunta na Universidade Federal do Pará (UFPA, Brasil).

Além disso, é escritora (não deixem de conferir seu romance Valentina busca el norte, publicado pela Babidibú em 2020) e pesquisadora da literatura, do folclore e da mitologia de tradição oral. Recentemente, foi lançada a versão impressa e bilíngue do livro A Amazônia desde adentro. Histórias fantásticas de la selva, uma linda coletânea de dez contos inspirados em dois personagens emblemáticos da mitologia amazônica: o Curupira e a Matinta Pereira.

A Amazônia por dentro

Começamos a entrevista perguntando a Gracineia Araújo sobre a origem do projeto e como surgiu a ideia de escrever um livro de contos baseado no folclore amazônico. Ela nos conta que chegou à UFPA em 2019 e, desde o início, quis conhecer mais sobre a região, pois entendia que a Amazônia era “muito mais do que uma grande mancha verde que cobre um lugar do mundo chamado América do Sul”.

Decidida a conhecê-la por dentro, começou a perguntar aos seus alunos sobre mitos e histórias lendárias. Assim, descobriu pela primeira vez muitas histórias fascinantes e apaixonantes. Ao pesquisar um pouco mais, percebeu que quase não havia registros escritos sobre essa literatura de tradição oral, menos ainda na perspectiva do ensino de espanhol, sua área de atuação.

Decidiu, então, trabalhar com essa literatura em suas aulas e dar a ela “o protagonismo que merece”.

Gracineia havia acabado de defender uma tese de doutorado sobre dois romances de Miguel Delibes, O caminho e Os ratos, e nos confessa que, curiosamente, a obra desse escritor espanhol a aproximou muito do seu próprio mundo, o sertão. As histórias de Delibes, ambientadas na Castela dos anos 1950, falam de migrações em massa do campo para a cidade, da perda de tradições seculares… Para ela, esses temas soaram familiares e comparáveis ao que mais tarde aconteceu no sertão baiano.

Sua tese lhe permitiu voltar ao campo e beber dessas tradições que estavam desaparecendo e que sentiu necessidade de resgatar. Assim, começou a escrever as fantásticas histórias que compõem o livro A Amazônia desde dentro, com o objetivo de integrá-las ao ensino de espanhol. A obra foi originalmente escrita em espanhol e, posteriormente, traduzida para o português.

Em A Amazônia por dentro, encontramos contos de ficção inspirados na rica tradição amazônica, recolhida por meio do contato com seus alunos, originários da região amazônica, alguns de lugares especialmente isolados, como sua bolsista, que vem do povoado de Apuí, de onde muitas das histórias permeiam a obra.

Os mitos são universais e nos acompanham desde os primórdios da humanidade. Não há povo sem lendas, como mostram os relatos cosmológicos que tentam explicar a origem do mundo, de onde viemos e para onde vamos.

No âmbito do ensino de uma língua estrangeira, as lendas têm um importante caráter didático-educativo. Esses relatos abordam as preocupações de homens e mulheres de todas as épocas, permitindo trabalhar tanto questões linguísticas quanto culturais. No caso da Amazônia,

os relatos lendários nos permitem adentrar a floresta e conhecer muitos de seus segredos e mistérios (…) conhecimentos ancestrais transmitidos oralmente de geração em geração e que os livros de história oficial não conseguem mostrar.

Curupira e Matinta Pereira

Gracineia nos conta que a escolha do Curupira como protagonista da obra não foi por acaso, mas uma decisão guiada pela razão e pelo coração. Para começar, ele é o primeiro ser fantástico amazônico de que se tem registro escrito. Em 1560, o jesuíta espanhol José de Anchieta o descreveu como “um demônio dos Brasis”. Gracineia decidiu investigar o mistério dessa criatura para descobrir se era um deus ou um demônio e, sobretudo, por que esse espírito da floresta sobrevive até hoje.

O Curupira desempenha um papel didático muito importante, sendo o protetor da floresta. Ele é uma entidade ambígua, que tanto pode ajudar quanto punir, dependendo das intenções daqueles que entram na floresta. Dessa forma, afasta-se da imagem demoníaca de Anchieta e transforma-se em uma entidade ambígua, que não é nem boa nem má. Pode nos ajudar a encontrar boa caça ou os melhores frutos, desde que entremos na floresta com amor e respeito. Porém, se nossas intenções não forem boas, conheceremos seu lado mais vingativo. O Curupira é um especialista em desorientar (não à toa tem os pés voltados para trás, para que suas pegadas não revelem sua posição) e é plenamente capaz de fazer com que os mal-intencionados se percam de forma irreversível na floresta.

Por sua vez, a Matinta Pereira é descrita como “a filha predileta do Curupira”. Assim, a decisão de dedicar os contos a ambas as entidades foi evidente. Para terminar, comenta:

transcender as fronteiras da Amazônia [brasileira] porque há muitos seres que também se encontram em outras partes do mundo (…) a Amazônia é um universo de nove países e, claro, esses seres também estão presentes em outras culturas.

Livro ou audiolivro? Eis a questão

O livro A Amazonia desde adentro tem uma característica especial: ao final de cada texto, encontramos um código QR que nos leva à versão sonora do conto.

Para realizar essa fase do projeto, Gracineia nos conta que começou a bater à porta de muitos amigos e conhecidos de diferentes áreas e localidades. “Levando em conta que o espanhol está presente nos cinco continentes, vamos dar um toque de mestiçagem para abranger também, de certa forma, a variedade linguística do espanhol”, pensou. Assim, a versão em espanhol conta com colaboradores de Salamanca, Barcelona, Madri, Argentina, Porto Rico, México e Colômbia.

Por sua vez, na versão em português, os relatos são narrados por alunos ou ex-alunos da Amazônia profunda. Nem todos os voluntários puderam participar do projeto, por isso, nossa entrevistada deu prioridade aos habitantes do interior da floresta, às vozes que “não ouvimos na televisão”, como ela mesma diz. Dessa forma, queria dar-lhes o protagonismo que merecem.

Por fim, ela nos confessa que a ideia de incluir os códigos QR tinha como objetivo tornar o projeto mais inclusivo.

Há muita gente ainda, infelizmente, na Amazônia, no sertão e em outras partes, que não são alfabetizadas por diversas circunstâncias, e pensei que essa seria uma forma de dar-lhes a oportunidade de ouvir esses relatos.

Para saber mais

Baixe aqui o catálogo da exposição “Amazônia Invisível” do fotógrafo brasileiro Ricardo Martinelli.

Também está disponível para download gratuito o livro Tensões e vivências afirmativas na Amazônia brasileira (EUSAL, 2024), na página da Editora da Universidade de Salamanca.

E uma pequena coleção de programas do BMQS dedicados à Amazônia brasileira.

Música no programa

BioBrasil é uma coluna do programa Brasil es mucho más que samba dedicada a divulgar a biografia de expertos, profissionais e personagens (históricos e atuais) da vida cultural, política e social brasileira. Brasil es mucho más que samba se emite todas às terças-feiras, às 17h30, em Rádio USAL. Para sugerir uma pauta ou contatar com a equipe do programa, escreva ao masquesamba@usal.es

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