Para provar que samba com “Ñ” dá certo, trazemos nesta entrega uma entrevista com a cantora e compositora Vanessa Borhagian, sobre o seu novo trabalho VanesSamba de raíz. Nesse trabalho, a artista consegue unir o idioma espanhol com o samba num brilhante equilíbrio, uma contribuição única: o disco é resultado de um trabalho de pesquisa intenso sobre a sonoridade do idioma espanhol para poder compor samba. A originalidade do trabalho está em combinar as palavras de forma a encaixá-las nos ritmos brasileiros.
Vanessa Borhagian
Vanessa Borhagian é natural de São Paulo e vive em Madri há 18 anos. Ela veio para a Espanha a convite da discográfica de músicas do mundo Nubenegra, para cantar e gravar um disco de músicas brasileiras com o músico Zezo Ribeiro. Juntos gravaram o disco Tubilhão (Nubenegra, 2005), que lhes proporcionou muitas atuações na capital espanhola.
Em 2009, chegou o Telaraña 1, e em 2012, o Telaraña 2 (podcast sobre o Telaraña e uma entrevista com Vanessa Borhagian). Esses dois projetos estão pensados para um público infantil (mas os pais também vão adorar, pode crer!). O Telaraña 1 está disponível em Spotify, e a gravação completa do show está no YouTube (confere só aqui). Além do trabalho como intérprete, Vanessa Borhagian também atua como regente de corais, ministra cursos de criatividade, comunicação e cuidados com a voz, além de produção musical e trilha sonora para filmes. Mais tarde, em 2018, chegou a vez de Libertad, um disco quase todo em espanhol (com apenas três músicas em português), com a produção e composição de Vanessa Borhagian.
e esse disco é o resultado disso, do processo de empoderamento, fortalecimento e autoestima meu e das minhas amigas em volta, e o resultado disso é esse disco Libertad, que eu tenho também muito carinho.
Vanessa Borhagian
VanesSamba de raíz

Agora, em 2023, Vanessa Borhagian lança seu novo trabalho VanesSamba de raíz, um disco com composições suas de samba em espanhol. As letras das músicas foram feitas em espanhol, ou seja, não é um disco com composições traduzidas do português (como acontece muitas vezes), mas feitas em espanhol para a melodia do samba.
Esse disco materializa e culmina uma longa história de superação pessoal e de descobrimentos. Depois de enfrentar momentos de perda, de recuperação da saúde, Vanessa Borhagian decidiu que para “trazer cor à vida” devia pintar, atividade que gostava desde a infância. Para cada situação de superação, cada reencontro e despedida, ao longo dos últimos dez anos, Vanessa pintou um quadro; por trás de cada um desses quadros há uma história e, agora, para cada quadro há um samba.
A intenção disso tudo é contar uma história, as músicas são histórias, cada música tem uma história (...) os quadros, a emoção, a história das músicas, já estava tudo pronto, porque os quadros foram feitos a partir de histórias, eu já tinha esses quadros, a imagem, a história, tudo muito metido na minha alma, foi, simplesmente, só ajeitar para colocar ali daquele jeito, daquele formato de música e contar essas histórias em castelhano. Cada quadro e cada música me pediu para ser daquele jeito. Na verdade, elas saíram muito fáceis, elas nasciam muito fáceis, porque tinha história, já tinha os quadros, tinha tudo, então elas nasceram fáceis
Vanessa Borhagian
Ao longo da entrevista, Vanessa Borhagian conta um pouco da história de cada música do disco. E uma delas é “Marcela”, inspirada no personagem homônimo da obra Dom Quixote. No livro, a personagem é culpabilizada pelo suicídio de um pastor, que estava profundamente apaixonado por ela. E no funeral dele, Marcela aparece para defender-se das acusações de ter arruinado a vida daquele homem. A música que Vanessa Borhagian compõe tenta manter as palavras do discurso que a Marcela do livro pronuncia em defesa própria. O discurso da personagem começa assim (o discurso completo em espanhol está disponível neste link):
“—No vengo, ¡oh Ambrosio!, a ninguna cosa de las que has dicho —respondió Marcela—, sino a volver por mí misma y a dar a entender cuán fuera de razón van todos aquellos que de sus penas y de la muerte de Grisóstomo me culpan; y, así, ruego a todos los que aquí estáis me estéis atentos, que no será menester mucho tiempo ni gastar muchas palabras para persuadir una verdad a los discretos. Hízome el cielo, según vosotros decís, hermosa, y de tal manera, que, sin ser poderosos a otra cosa, a que me améis os mueve mi hermosura, y por el amor que me mostráis decís y aun queréis que esté yo obligada a amaros. Yo conozco, con el natural entendimiento que Dios me ha dado, que todo lo hermoso es amable; mas no alcanzo que, por razón de ser amado, esté obligado lo que es amado por hermoso a amar a quien le ama. Y más, que podría acontecer que el amador de lo hermoso fuese feo, y siendo lo feo digno de ser aborrecido, cae muy mal el decir «Quiérote por hermosa: hasme de amar aunque sea feo». Pero, puesto caso que corran igualmente las hermosuras, no por eso han de correr iguales los deseos, que no todas hermosuras enamoran: que algunas alegran la vista y no rinden la voluntad; que si todas las bellezas enamorasen y rindiesen, sería un andar las voluntades confusas y descaminadas, sin saber en cuál habían de parar, porque, siendo infinitos los sujetos hermosos, infinitos habían de ser los deseos (Miguel de Cervantes, Don Quijote de la Mancha).
É claro que para enfrentar tal hercúleo cometido, Vanessa Borhagian contou com a colaboração de grandes músicos: Ana Claudia César(cavaquinho), Rosana Bergamasco, Fernando de La Rua e Raul Kiokio (violão de 7 cordas), Carlos Mankuzo (bateria e percussão), Fabián Carbone (bandoneon), Diego Ebbeler (teclados), Alejandro Vaquerizo (baixo elétrico), Boo Hewerdine (voz e composição de “Mama Tierra” com Vanessa Borhagian), Selma Boragian (voz), Leticia Malvares e Mari Leona (flautas), Edimundo Santos e Analisse (voz), e Salomé Limón (engenheira de som).
Em um momento da entrevista, Vanessa Borhagian diz o seguinte:
Então, na verdade, a minha intenção também é abrir caminho, abrir portas e abrir caminho para todos os brasileiros que façam samba, e todas as pessoas que não são brasileiras, porque o samba é de todo mundo, o samba nasceu no Brasil, mas o samba é de todo mundo, o samba tem que ser de todo mundo, né? Tem que ser assim, não pode ser de outro jeito.
Vanessa Borhagian
Ou como dizia o poeta “Quem não gosta do samba bom sujeito não é, ou é ruim da cabeça ou doente do pé”. O samba é arte e a arte nos salva.
Obrigada, Vanessa!